Sábado, 02 Novembro 2024 | Login

Quase 25 mil pessoas passaram por laqueaduras e vasectomias de forma voluntária na Bahia entre 2020 e 2022, de acordo com dados da Secretaria Estadual da Saúde (Sesab). No ano passado, as esterilizações tiveram um crescimento de 145% em relação a 2021. O número deve continuar a crescer, pois este mês entra em vigor a Lei 14.443/2022, aprovada em setembro do ano passado. O dispositivo reduz para 21 anos a idade para o procedimento, sem a necessidade de autorização do cônjuge.

O novo ordenamento legal altera a antiga Lei do Planejamento Familiar, de 1996, e foi votado no ano passado no Congresso em sessão dedicada às pautas relacionadas às mulheres, em homenagem ao aniversário da Lei Maria da Penha. O prazo era entrar em vigor seis meses após a sanção presidencial.

Apesar de conferir maior liberdade ao processo de esterilização, a nova lei chama mais a atenção no caso das pessoas que possuem útero, principalmente as mulheres cis (aquelas que se reconhecem no gênero feminino designado ao nascerem). ”A importância foi retirar a autorização que as mulheres precisavam do marido para fazer a laqueadura, isso é uma aberração. O movimento feminista nunca aceitou isso”, explica a professora titular da Ufba, Silvia Lucia Ferreira, coordenadora do Neim - Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher.

Além disso, a redução da idade mínima para a esterilização favorece ainda as mulheres solteiras ou com menos de dois filhos. Na lei antiga, a mulher podia realizar o procedimento de laqueadura somente caso tivesse idade mínima de 25 anos ou dois filhos vivos. Com a atualização, a idade mínima passa a ser 21 anos, mas a necessidade de dois filhos permanece para aquelas com idade menor à estabelecida na lei.

O número de laqueaduras realizado na Bahia em 2022 foi 264% maior do que o registrado em em 2021. Foram 9.727 procedimentos, das 2.239 aconteceram durante o parto cesariano. A nova lei também permite que a mulher realize a cirurgia durante o parto. Antes, era permitido apenas em casos que ofereciam complicações à saúde da mulher. O prazo para indicar o interesse pela esterilização é no mínimo 60 dias antes do parto. Esse tempo é reservado para que o médico explique as consequências da cirurgia, como a dificuldade de reversão.

Direito ao corpo
O avanço, no entanto, é comemorado com cautela por especialistas e mulheres que desejam realizar o procedimento cirúrgico. “O corpo da mulher é completamente legislado pelo estado quando diz respeito ao direito reprodutivo. Nesse ponto, se a gente for tomar a questão da autonomia, acabou sendo uma lei que vai dizer o que a mulher tem que fazer”, diz a pesquisadora Silvia Lucia, que comemora o avanço dessa lei em relação à anterior, mas ressalta que ainda há diversos entraves que as mulheres precisam enfrentar. Entre eles, estão as “objeções de consciência” e o funcionamento do próprio Sistema Único de Saúde (SUS).

Aline Almeida Sampaio, 39 anos, moradora da cidade de Bonito, na Chapada Diamantina, há cinco anos tenta fazer a laqueadura. Durante um mutirão do procedimento, ela tinha o documento de autorização assinado pelo marido e os exames pré-operatórios necessários, mas ainda assim não conseguiu fazer a cirurgia. “Eu tenho uma filha, e não quero mais filhos. Eu tive uma filha aos 31 anos, tive depressão pós-parto e decidi não ter mais filhos”, conta.

Mesmo estando apta para realizar a laqueadura, Aline foi avisada que só poderia fazer o procedimento caso pagasse, por ter apenas uma filha. No entanto, a lei de 1996 já assegurava que a pessoa poderia fazer a esterilização, sem necessidade de filhos, a partir dos 25 anos. A alternativa encontrada por ela foi colocar o DIU de cobre, no final de 2017, que foi rejeitado pelo seu corpo.

Mesmo ao ver a notícia sobre a aprovação da nova lei, Aline ainda desconfia da efetividade. “Eu posso fazer, tenho mais de 21 anos, mas só posso fazer se tiver dois filhos. E eu não posso fazer com um filho só por quê? Se o corpo é meu, eu que decido. Se a família é minha, se a responsabilidade de criar minha filha é minha? Quem tem que decidir quantos filhos eu coloco no mundo sou eu”.

O que Aline enfrenta é comum também entre as mulheres sem filhos. A advogada Patrícia Marxs, que orienta esses casos no perfil “Laqueadura sem Filhos”, conta que recebe diversas denúncias de médicos que se recusam a fazer o procedimento ou até quadrilhas que pedem pagamento para realizar a operação pelo SUS. “Eu acredito que ainda vai ser difícil [uma mudança] por conta do machismo e elementos socioeconômicos”, diz.

A advogada, que atende no Ceará, relata que muitos médicos ainda se equivocam na leitura da legislação. “Se não houver um movimento muito forte da sociedade, é capaz de não mudar nada. Querem muito que as mulheres tenham filhos. Tem casos em que a mulher tem quatro filhos e aí eles [médicos] dizem ‘venha com o quinto que eu faço laqueadura’. Absurdo que a gente ainda tenha que aceitar decidirem por nós mesmas. A laqueadura não é crime”, afirma.

Pesquisadora do direito reprodutivo da mulher, Silvia Lucia explica que esses empecilhos colocados por médicos para realizar as laqueaduras são chamados de ‘objeções de consciência’. “É muito comum em relação às mulheres, são pessoas que acreditam que a mulher tem que engravidar”, afirma.

Publicado em Bahia