Casamentos entre pessoas do mesmo sexo crescem 25,6% na Bahia em 2020
Estudante do Colégio Militar na adolescência e ex-namorada do filho do coronel da escola, Luciana Ferraz, 31 anos, percebeu logo jovem que não seguia a heteronormatividade no amor. Aos 16 anos, ela se descobriu lésbica e se assumiu aos poucos para a família. “Contei primeiro para algumas amigas, depois cortei o cabelo. Quis mostrar quem eu realmente queria ser”, conta Luciana, hoje publicitária. Ela foi uma das 242 baianas que se casou este ano, após três anos de namoro com a médica Nathalie Santiago, 33.
Ao todo, a Bahia soma mais de 2,9 mil casamentos e uniões estáveis homoafetivas desde a legalização pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A união estável homoafetiva passou a valer no Brasil em 2011. Já o casamento, em 2013. Durante pandemia da covid-19, foi recorde o número de pessoas do mesmo sexo que resolveram se casar: 410 casais ‘juntaram as escovas de dentes’ no estado.
Esse número é quatro vezes maior do que o registrado no primeiro ano da legalização, em 2013, quando ocorreram 99 casamentos. Em 2020, houve crescimento de 25,6% em relação a 2019. Segundo a Associação dos Registradores Civis das Pessoas Naturais do Estado da Bahia (Arpen-BA), esse aumento pode ter sido para garantir direitos aos companheiros em caso de morte pela covid-19.
Essa foi uma das motivações de Luciana e Nathalie, que hoje vivem em Recife, Pernambuco. Elas já moravam juntas há dois anos.
“A gente decidiu casar justamente por conta da pandemia, pensamos em muita coisa, como em plano de saúde, e ficamos preocupadas de não ter a formalização da relação. Então, a gente decidiu não adiar mais, para poder facilitar algumas coisas”, explica Luciana.
O casório foi simbólico e com cerimônia restrita, no último dia 15 de junho, data em que começaram a namorar, há três anos. Na cerimônia, só elas duas, a mãe e o tio de Nathalie. A mãe de Luciana irá visitá-las em agosto, após tomar a segunda dose da vacina contra covid-19, para terminar as comemorações.
Direitos conquistados
Advogado do escritório Pedreira Franco Advogados Associados e professor de Direito Civil da Unifacs, Roberto Figueiredo vê a mudança no entendimento legislativo sobre as uniões homoafetivas como um grande avanço no direito brasileiro. Ele explica que, na verdade, não houve uma legalização, e sim uma orientação legal que permitiu essas uniões. Algo importante a ser lembrado nesta segunda-feira, 28 de junho, Dia do Orgulho LGBTQIA+.
A data faz referência à Rebelião de Stonewall, de 1969, em Nova York, contra policiais que faziam uma série de invasões a bares frequentados por homossexuais. Vários protestos em favor dos direitos da comunidade foram organizados naquele ano e, em 1970, aconteceu a primeiro Dia da Libertação Gay, em NY.
“Legalizar é uma expressão que pressupõe a elaboração de uma lei e só quem pode legislar sobre casamento é a União. Não há uma lei na Bahia legalizando o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O que temos é uma orientação aos cartórios, em decorrência de recentes decisões dos tribunais superiores, no sentido de admitir o casamento também para as pessoas do mesmo sexo, o que, ao meu ver, representa um avanço, uma conquista de mais um direito civil”, esclarece Figueiredo.
Os direitos conquistados para os casais homoafetivos são os mesmos que os heteronormativos: pensão alimentícia, guarda de filhos, regime de bens, assim como direitos sucessórios, tais como a herança. A principal mudança, segundo o professor, é o aumento da segurança jurídica, eliminando debates a respeito destes assuntos.
Ele lembra ainda que o Brasil não é tão atrasado assim neste tema.
“Cada país, a seu tempo e ao seu modo, vem tratando desse importante tema. Em termos de América, o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo por uma Suprema Corte aconteceu primeiramente no Brasil do que nos Estados Unidos. Mas, precisamos avançar no coração, na cultura e entender que qualquer forma de amor vale a pena. Não podemos aprisionar a alma e o afeto das pessoas ao nosso modo de ver o mundo”, afirma o advogado.
Para a publicitária Luciana Ferraz, por exemplo, a aceitação da família, na época de sua descoberta, foi um pouco difícil. Não tanto pelo preconceito, mas pelo medo do que ela poderia sofrer.
“Minha mãe tinha acabado de se separar e se culpou por isso. Ela tinha medo do desrespeito que eu ia passar na rua, do que as pessoas iam falar. Foi uma carga pesada, mas dei espaço para ela. Hoje, ela tem uma relação muito boa com minha esposa, conversam e ela liga todo dia”, narra a publicitária.
Afirmação
O ator e diretor Celso Júnior, 53, professor do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), se beneficiou dos dois direitos assim que eles ficaram disponíveis. Em 2012, oficializou a união estável com Leonardo Benjamim, 48. Em 2013, eles se casaram no dia 25 de setembro – quatro meses depois de o Conselho Nacional de Justiça publicar a Resolução 175, que tornou isso possível.
A oficialização em dose dupla se deu após um incômodo de Celso com o estado civil. “União estável dá os mesmos direitos que o casamento, mas não muda o estado civil. E quando a gente foi passar o final de semana em Praia do Forte, tinha que preencher, na entrada do hotel, a ficha para entrar. Tive que colocar no estado civil que era solteiro e aquilo me deixou numa crise horrorosa. Aí a gente começou a conversar sobre o assunto, se informar, e um mês depois a gente casou no Fórum”, conta Celso.
Celso conta que viveu algumas situações pontuais de preconceito - na escola e com comentários da família. Mas, a primeira vez que foi ameaçado de agressão, em um episódio de homofobia, foi em 2018.
“Foi na véspera da eleição, eu estava saindo do teatro do ICBA e a gente não estava fazendo nada demais, estávamos de mãos dadas, dando risada, com um outro amigo, quando passou um carro com adesivo do atual presidente, dizendo: ‘Bolsonaro vai matar todos esses viados, vai acabar com essa viadagem’. Foi a primeira vez que fui realmente ameaçado fisicamente”, relata.
Por isso, Celso faz questão de se afirmar a favor dos direitos LGBTQIA+ e tratar a relação com normalidade. “Percebi o quanto que era preciso afirmar politicamente que era casado no civil, faço questão de comentar com absoluta normalidade, seja em reunião de condomínio, na sala de aula, com meus alunos”, completa Celso Júnior.
A luta continua
Para a defensora pública Lívia Almeida, ainda há muito o que avançar. “Onde mais temos que avançar é no respeito às pessoas. Felizmente, foi retirada a impossibilidade de doação de sangue das pessoas LGBTs, o que era algo totalmente preconceituoso e discriminante. Mas ainda está em julgamento no STF a questão do uso do banheiro por pessoas trans, o que é um absurdo, em 2021, a gente estar lutando por isso. Algumas leis municipais já foram declaradas inconstitucionais e limitam o uso do banheiro ao sexo biológico, o que não faz sentido”, declara a defensora.
Por conta disso, ela defende que o Dia do Orgulho LGBTQIA+ deve, sim, ser celebrado.
“As pessoas devem sim sentir orgulho, porque, apesar do preconceito, elas sofrem na rua e lutam para sobreviver. Ainda somos o país que mais mata pessoas trans no mundo, a população trans tem expectativa de vida de 35 anos. Então é um dia de resistência”, acredita Lívia.
É nesse sentido da garantia dos direitos conquistados e no avanço em outros aspectos do tema que a Defensoria Pública da Bahia atua. “A Defensoria procura trabalhar e falar do tema não só nesses meses em específico, mas o ano inteiro, porque a gente entende que é uma população vulnerabilizada e marginalizada”, afirma Lívia.
Dentre as ações promovidas pelo órgão, estão a adequação do nome social (leia mais na página 21), capacitação com as polícias para que fique clara a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual, garantia da gratuidade da certidão de nascimento para pessoas trans que não têm condição de pagar pelo documento.
Casamento pode ser feito de forma online
Com a pandemia do novo coronavírus, casar e registrar união estável ficou mais fácil. Desde junho do ano passado, o ato pode ser realizado de forma online, pela plataforma e-Notariado (www.e-notariado.org.br). Para isso, é preciso de um Certificado Digital Notariado, emitido gratuitamente pelos Cartórios de Notas cadastrados, ou possuir um certificado padrão ICP-Brasil, o mesmo utilizado para envio do Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF).
Com o certificado digital, a pessoa deve entrar em contato com o Cartório de Notas de sua preferência e solicitar o registro. Um link para a videoconferência será enviado para o e-mail do usuário. Após a vídeo-chamada, na qual é realizada a identificação das pessoas e a coleta de sua vontade, é possível assinar o documento pelo computador ou celular.
No Brasil, desde a decisão do Supremo Tribunal Federal, mais de 21,6 mil escrituras de uniões estáveis entre casais do mesmo sexo foram realizadas por cartórios de notas de todo o país. De acordo com a Arpen-BA, foram 2.125 em 2020. Dezembro foi o mês mais escolhido para a realização do ato, com uma média de 198 uniões realizadas no período a cada ano, tendo seu pico em 2018, quando 325 uniões homoafetivas foram realizadas. O ano de 2018, véspera do início do mandato do atual presidente da República, marca também o recorde da década - 2.595 atos realizados.
Lives sobre Orgulho LGBT
Algumas lives e palestras serão feitas, nesta semana, para comemorar o Dia Mundial do Orgulho LGBTQIA+, celebrado nesta segunda-feira (28). Às 19h, esta segunda, um debate promovido pelo Shopping Bela Vista abordará a importância deste dia. Ela será conduzida pelo influenciador e ativista Genilson Coutinho, que tirará dúvidas dos seguidores. A ação acontecerá através do Instagram do Shopping Bela Vista (@belavistashopping).
Outras duas lives serão promovidas pelo Grupo Gay da Baia (GGB). Nesta terça-feira (29), às 13h, a médica ginecologista e obstetra Jaqueline Espírito Santo fará um debate sobre a saúde e atendimento ginecológico de pessoas trans, promovido pelo Centro Municipal de Referência LGBT+ Vida Bruno. A palestra será presencial, na própria sede do Centro, no Rio Vermelho.
Outro debate a ser realizado pelo Grupo será nesta terça, com o historiador e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Luiz Mott sobre diversidade etária e a vida LGBTQIA+. No debate, Mott vai debater sobre o envelhecimento dessa comunidade, desafios, saúde física e mental, assim como solidão e depressão.
O que mudou de 1969 até aqui? Confira algumas das conquistas do movimento:
Criminalização da LGBTfobia pelo STF - 2019
Reconhecimento social da identidade de gênero - 2019
Casamento civil igualitário - 2013
União estável entre pessoas do mesmo sexo - 2011
Permissão para casais homoafetivos adotarem crianças - 2010
Políticas públicas pelo fim da discriminação
Maior representatividade da comunidade nos meios de comunicação