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A delimitação no mapa, os registros em documentos públicos e nos livros de história, possuir serviços essenciais e a conexão com um estado. Estes podem ser elementos de uma cidade, mas sem gente fica difícil defender a ideia de urbe. Uma capital como Salvador, culturalmente rica, diversa e única, duvidosamente seria o que é hoje, 29 de março de 2022, quando completa seus 473 anos, não fossem os povos que a mantiveram de pé.

Terra de hospitalidade e resistência indígena, orgulhosa primeira capital do então território colonial português e já tendo sido, lamentavelmente, o maior porto para a chegada de pessoas negras escravizadas das Américas, a Salvador do presente se conecta com seu povo do passado através de costumes e tradições que se mantêm, renovam-se e se cruzam.

Nas ruas, as contribuições desses grupos étnicos se apresentam e chegam a se misturar. O vestido de renda tradicionalmente português é usado pela baiana que vende os quitutes de herança africana; os nomes de muitos bairros da capital mantêm vivas línguas indígenas; a paisagem urbana ora remete às ruas de Lisboa, em Portugal, e em outros momentos transporta para Lagos, cidade do sudoeste da Nigéria.

“Salvador é enriquecida por não estarmos fechados em uma cultura somente. Somos uma mistura de povos e essa diversificação é saudável. Você tem a culinária e o falar indígena, a cultura africana e costumes de diversos continentes dentro de um lastro que é o da colonização portuguesa.”
Ele próprio conta vivenciar o clima português em Salvador atestado pela família de origem portuguesa. Senna lembra que já morou no bairro da Saúde em um sobrado, um tipo de construção tipicamente portuguesa que é frequente ainda hoje naquela região do Centro Antigo.

Religiosa, Salvador é uma cidade que preserva e adapta procissões e festas católicas que se assemelham à religiosidade europeia, assim como consegue unir folhas, indumentárias, ritos e filosofias indígenas e africanas em tantas feiras de rua e espaços de culto. Para o antropólogo e babalorixá Vilson Caetano, as contribuições da religiosidade de matriz africana são tantas que chega a ser difícil distinguir onde começam e terminam.

“A questão da religiosidade perpassa tudo. A concepção de espaço sagrado, da comida sagrada e a ideia de cura que está presente nesta cidade”.

Nascido em Valença, capital do Baixo Sul baiano, Caetano vive há cerca de 30 anos em Salvador. “Aqui é uma cidade mágica, a gente sente a presença dos ancestrais muito próxima. A gente vê África em cada esquina e é justamente isso que nos ajuda a enfrentar as contradições da cidade de Salvador, porque embora seja a cidade mais negra fora do continente africano ainda é uma cidade onde nós homens e mulheres negras não temos lugar”, afirma o professor da UFBA.

A cultura indígena carece de preservação. Combates, doenças e fugas por sobrevivência quase extinguiram os povos indígenas da capital, sobretudo os Tupinambás, que eram em maior número. Professor da disciplina A História dos Povos Indígenas do Brasil da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Fabricio Lyrio olha para trás para lembrar como a receptividade inicialmente dirigida aos portugueses, o conhecimento estratégico do território ‒ das áreas de defesa à alimentação local, além do próprio suor e trabalho são características indígenas que merecem atenção.

“Esses povos não acabaram, eles continuam existindo. Muitos precisaram se deslocar para outras regiões, mas essa não é uma história do passado, os indígenas seguem no processo de resistência e de luta por direitos”.

Conheça cinco áreas em que costumes e tradições indígenas, negros e portugueses se cruzam
1) Sistema métrico e ordenamento da venda na rua

Em Salvador, “um litro” de cajá pode corresponder a uma lata de óleo ou parte de uma garrafa pet. Na feira, também dá para comprar “uma mão” de camarão, sem esquecer de pedir uma quebra. De acordo com o professor Vilson Caetano, essa informalidade e o modo como a cidade historicamente se abastece de alimento são característicos e têm uma origem: a forma como os negros organizam a venda de alimentos na cidade no passado.

“Vários autores chamam a atenção para o fato de só termos um celeiro público no final do século 19. Então, como a comida chegava às pessoas? Você tinha os armazéns, com os portugueses e depois os espanhóis, ou na rua mesmo com uma ativa participação dos africanos, das quitandeiras, das mulheres que compravam todo o peixe da praia e levavam o preço lá para cima”, ilustra Vilson.

O professor lista que o modo como a cidade vende e compra seus alimentos é fortemente influenciado pela cultura africana. “As permutas, um feirante que não tem um produto, mas pega na mão de outro para não deixar o cliente ir embora, as medidas que são diferentes do sistema métrico, uma mão de seriguela, por exemplo, tem também o modo de mercar gritando”.

O fato de alimentos para o corpo e para a alma se encontrarem em um só lugar, como na Feira de São Joaquim, também vem daí. “O africano não separa o sagrado do cotidiano. A gente vê isso aqui em Salvador, assim como em algumas áreas como nas feiras de Angola e Benin”, compara.

2) O quitute da África com a indumentária de Portugal

Tem um tanto de Portugal na tradicional indumentária da baiana de acarajé. É o que defende o pesquisador Francisco Senna. Para o professor aposentado da UFBA, a influência dos bordados é um dos exemplos da presença da arte portuguesa na cidade, incluindo a pintura, especialmente nas igrejas, além da prataria e ourivesaria na cidade com forte influência lusitana.

“O traje da baiana não é o traje da africana. O traje da africana é aquele vestido pintado, muito colorido, muito bonito, longilíneo e amarrado no corpo. Já o traje da nossa baiana é um traje de influência mista Portugal e África, mas com dominância muito grande dos tecidos portugueses, dos bordados, da barafunda portuguesa, toda aquela estrutura de saias rodadas que vem de Portugal e não de África, porque da África vem o traje mais esguio com aquele pano da costa muito elegante"

3) Inspirações portuguesa e africana têm elementos materiais e simbólicos no urbanismo

Cidade alta, cidade baixa. Essa é uma das divisões geográficas mais características de Salvador. Para além dessas imposições geográficas de uma cidade que cresceu a partir das estratégicas fortificações à beira do mar, há aspectos culturais de origem africana e portuguesa.

A comparação entre o centro antigo de Salvador e as cidades Lisboa e Porto, em Portugal, é recorrente. “Nossa arquitetura é essencialmente lusitana. Isso está presente nas nossas igrejas, conventos, sobrados, edifícios públicos, nas fortificações…”, enumera o Francisco Senna. Já para o professor Vilson Caetano, há uma outra comparação possível e que não é apenas por semelhança arquitetônica.

“Da mesma forma como se compara Lisboa e o Pelourinho, quem vai em algumas cidades do continente africano, em cidades como Lagos, na Nigéria, vai sentir que somos muito parecidos na maneira como nós organizamos o território. Falo a nível de organização, de otimização de espaço, de demarcação de alguns espaços como sagrados”, explica.

Piatã, Paripe, Pituaçu, Pernambués. Para além do P, esses são bairros de Salvador que trazem palavras de origem indígena. Narandiba, Tororó e Itapuã são outros exemplos de como a cultura indígena é presente na divisão do território da capital.

4) A comida do dia-a-dia portuguesa e a comida festiva e religiosa africana

Sexta-feira é dia de comida baiana, assim como muitas ocasiões festivas em Salvador pedem uma comida de dendê, com fortes influências africanas. Mas a nossa comida do dia-a-dia está ligada muito mais com os legados da colonização portuguesa, segundo o professor Francisco Senna.

"A culinária luso baiana é aquilo do cotidiano da mesa das famílias baianas. O arroz, o feijão, um ensopado, na janta você tem a sopa, o pão com café com leite. São costumes trazidos da mesa portuguesa e que em Salvador vai ser muito forte ao lado da tradição africana”.

Para o pesquisador, bolos, tortas e doces apreciados na capital baiana são um capítulo à parte, também com forte inspiração na doceria e confeitaria portuguesa.

Por outro lado, para o professor e babalorixá Vilson Caetano, os cultos de matrizes afro-brasileiras preservaram pratos que teriam se perdido não fosse a tradição religiosa, que os mantiveram como comida ritual, como é o caso do aluá ou aruá (bebida fermentada de origem afro-indígena), acaçá (espécie de manjar com milho e leite de coco servido na palha de bananeira) e o ekuru (uma espécie de farofa de feijão fradinho), além da própria maneira de fazer o acarajé e outros elementos da chamada comida baiana, fartamente consumida na capital.

Os usos e diferentes formas de manipulações de raízes, como a mandioca, são parte da contribuição da cultura indígena, que também se mistura na comida baiana, como no bobó. Os povos indígenas deram grandes contribuições sobre quais alimentos eram consumíveis. “Como diz Ailton Krenak, não fosse os índios, os portugueses nem saberiam que um caju dava para comer”, comenta o historiador Fabricio Lyrio.

5) Negros e indígenas contribuíram como o modo como lidamos com as doenças

Um banho de folha, um chá, uma ida à igreja de São Lázaro para fazer uma promessa. Para o antropólogo Vilson Caetano, o modo como os soteropolitanos ainda hoje lida com as enfermidades também é uma contribuição da comunidade negra para a cidade. “O cuidado com a saúde na colônia foi um dos grandes desafios. Africanos e africanas empregaram diferentes saberes milenares, das suas culturas, para acudirem a cidade em vários momentos, sobretudo nos momentos de epidemia”, pontua.

A relação entre saúde e fé com práticas religiosas tem seu diferencial na capital. “Você tem cultos a santos católicos na cidade de Salvador que, se você for olhar, no fundo, no fundo, são cultos a vodus, ancestrais ou orixás africanos que estão ali representados”, acredita. Além de São Lázaro, o culto a São Cosme e Damião invocados também como santos médicos são exemplos dessas referências para o pesquisador.

Fonte: G1/Bahia

Publicado em Bahia