Maria da Penha: medidas protetivas ficam sem resposta no prazo em 52% dos casos na Bahia
Além de sofrerem com a violência doméstica, mulheres vítimas de agressão ainda precisam lidar com o receio da falta de proteção após a denúncia. A Lei Maria da Penha estipula que o prazo para juízes e juízas decidirem sobre as Medidas Protetivas de Urgência (MPUs) é de dois dias. Porém, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Instituto Avon e Consórcio Lei Maria da Penha, 52% dos casos na Bahia ficaram pendentes de apreciação em 48h, e 34% chegaram a 120 horas - ou cinco dias.
No estado, foram registradas 24.722 MPUs e 43.411 casos de violência doméstica e familiar contra a mulher no período entre janeiro de 2020 e maio de 2022. São 322 registros a cada 100 mil mulheres, o que torna a Bahia o oitavo estado com maior número de ocorrências no país. Os dados fazem parte da análise do Painel Nacional de Medidas Protetivas de Urgência feita pelo CNJ e entidades em defesa da mulher.
A promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia (MP) Sara Gama associa que houve aumento de 14,4% no número de medidas protetivas de urgência concedidas pelos Tribunais de Justiça no último ano, de acordo com dados do Anuário Brasileira de Segurança Pública. Isso sem que as políticas públicas tenham sido implementadas na mesma proporção.
“Na capital, por exemplo, temos apenas duas delegacias especializadas e quatro varas, que, logicamente, por maior que seja o compromisso dos profissionais que lá estão, não é o suficiente para dar conta da demanda cada vez mais crescente. Acaba por haver um delay [atraso] entre o ingresso do pedido e a concessão”, analisa.
Advogada criminalista e especialista em crimes sexuais e violência doméstica, Milena Pinheiro salienta que a demora na análise mantém a vida da vítima em situação de risco. “Já tive situação de uma mulher vítima de tentativa de feminicídio, em que ela foi até a delegacia especializada, fez requerimento da medida por meio da autoridade policial e a demora na análise fez com que ela sofresse nova tentativa de feminicídio. Ela ficou escondida por dois ou três dias, com a família achando que estava morta, e ela escondida para não morrer”, narra.
Milena explica que a medida protetiva tem como função garantir a segurança da mulher e impor restrições ao agressor, como afastamento do local de convivência com a vítima ou fixação de limite mínimo de distância. Já a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) define que a violência doméstica contra a mulher é crime e prevê formas de prevenção, enfrentamento e punição à agressão, como afastamento do agressor, encaminhamento da vítima para programas de proteção e inclusão em programas de assistência governamental.
A advogada Ana Carolina Ladeia, 24, conta que foi vítima de agressões físicas e tentativa de homicídio pelo ex-namorado. A violência começou com xingamentos, evoluiu para traições e chegou ao ápice quando o agressor tentou enforcá-la. Após o episódio, Ana voltou para a casa dos pais e realizou denúncia.
Ela relembra que conseguiu medida protetiva que consistia em nenhum contato pessoal ou virtual, mas o processo demorou cerca de um mês para ser deferido e mesmo após denúncia, as ameaças continuaram. "Mesmo com protetiva e mandado de prisão o agressor continuou ameaçando, o que me deixou muito insegura em relação a continuar com tudo. Mas eu sabia que tirar a denúncia poderia gerar algo pior. Hoje a situação está mais tranquila porque, depois de meses foragido, o meu ex foi preso", afirma.
Apesar da salvaguarda, Milena Pinheiro diferencia a medida protetiva de ação penal, quando há possibilidade de encarceramento. A especialista diz que a ordem judicial que defere a medida de proteção pode dar ensejo, nos casos de descumprimento por parte do suposto agressor, a uma ação penal e também prisão. Já a ação penal é um processo que requer investigação mais aprofundada e segue a legislação conforme o tipo de acusação, podendo tratar de violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.
“Tendo a medida protetiva, a mulher se sente mais segura, ainda que ele não vá para preventiva, ela tem aquela medida que vai de certa forma salvaguardar a vida dela”, avalia.
Medida protetiva foi deferida em 96% dos casos de violência doméstica
Embora haja espera, o levantamento ainda mostra que o número de concessões das medidas é muito superior ao montante de negações. No TJ-BA, 96.07% são deferidos, contra 3.93% indeferidos. O estado com maior número de expedição é o Piauí, o Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI) deferiu 99.54% no período avaliado. Já o Distrito Federal, através do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, é a unidade federativa com maior taxa de casos indeferidos, 15.79%.
Para a promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia (MP-BA), Sara Gama, os profissionais ainda relutam em conceder as MPU em varas não especializadas. Isso porque, elas restringem direitos fundamentais da outra parte, como o direito de ir e vir.
“Por isso a importância da capacitação dos profissionais para julgamento com perspectiva de gênero, para que se compreenda que a dinâmica da violência nas relações privadas requer uma abordagem diferenciada”, pontua.
Centros de atendimento
Independente do município, vítimas podem ir diretamente a alguma delegacia especializada ou comum, porém, a diretora de Política para Mulheres da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ), em Salvador, Fernanda Cerqueira, orienta que vítimas de agressão procurem um Centro de Referência de Atendimento à Mulher (Cram), espaço de acolhimento às mulheres em situação de violência física ou verbal, ou ligar para 156*9, discagem que informa endereço, horário e telefone dos centros espalhados pela capital. O atendimento também trabalha com prevenção.
"A demanda no Centro é de porta aberta, qualquer mulher pode acessar", garante.
Assistentes da instituição, como psicólogas, irão encaminhar a vítima, se for o caso, para a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), realizar formulário de risco e, se necessário, solicitar medida protetiva. Mulheres em risco de morte passam 48h no Centro de Atendimento à Mulher Soteropolitana Irmã Dulce (Camsid) aguardando encaminhamento para casa de abrigo. As que não correm perigo de feminicídio passam 15 dias dentro do Camsid recuperando vínculos familiares, enquanto a entidade auxilia na solicitação de benefícios sociais e acompanhamento psicológico. Após saída do centro, o atendimento terapêutico continua sendo ofertado.
“Uma mulher veio de Valença [a 123,1 km de Salvador] e solicitou o 156*9 […] prontamente o município foi ao encontro dela, [depois ela] foi à Deam com a técnica e no prazo de 48h recebeu medida protetiva. Ela foi encaminhada para casa de abrigo estadual. O caso me marcou por causa do horário, a violência acontece, em geral, a partir das 20h e no caso dela foi 3h30 da manhã”, relembra.
Há três CRAMs na capital, o Centro de Atendimento à Mulher Soteropolitana Irmã Dulce (Camsid), com funcionamento de 24h para atendimento, Centro de Referência Especializado de Atendimento à Mulher Arlette Magalhães (Cream) e Centro de Referência de Atenção à Mulher Loreta Valadares (CRAMLV), ambos das 8h às 17h. As unidades se situam, respectivamente, na Ribeiro, em Cajazeiras e Barris.
Municípios como Feira de Santana, Vitória da Conquista, Camaçari, Juazeiro e Itabuna possuem centros de referência e atendimento à mulher. É possível checar o mapa de atendimento através do portal Tamo Juntas, organização feminista composta por mulheres profissionais que atuam voluntariamente na assistência multidisciplinar a mulheres em situação de violência.
Para a coordenadora de pesquisa e impacto do Instituto Avon, Beatriz Accioly, o intuito do levantamento foi justamente mostrar a necessidade de ter ferramentas para monitorar e avaliar políticas públicas. Assim, é possível ter diagnóstico e traçar metas para aperfeiçoar o serviço para a população. Porém, a reportagem entrou em contato com o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) a solicitar justificativas para o atraso e medidas de correção e com a Polícia Civil a fim de entender o processo de atendimento no Deam, entretanto, não recebeu retorno até o fechamento da matéria.
Glossário:
Lei Maria da Penha: lei distrital brasileira, cujo objetivo principal é coibir e punir atos de violência doméstica contra a mulher.
Medida protetiva: ordem judicial concedida para proteção de indivíduo em situação de risco, perigo ou vulnerabilidade
Violência doméstica: agressão física, sexual, psicológica, de negligência ou abandono dentro de unidade doméstica
Agressão psicológica: ameaça, manipulação ou limitação do direito de ir e vir. Situação que cause prejuízo à saúde psicológica da vítima