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O sonho de todo artista é ter o trabalho reconhecido. Tatti Moreno conseguiu e foi além: o artista plástico ajudou a construir a identidade da cidade, representando entidades importantes para um povo e transformando sua obra em cartões postais de Salvador.

Octavio de Castro Moreno Filho morreu na última quarta-feira (13) aos 77 anos, em sua casa. A informação foi confirmada ao CORREIO pela esposa do artista, Gisele Fraga, mas a causa da morte não foi divulgada. O velório do corpo do artista será a partir das 11h30, no Cemitério Jardim da Saudade, em Brotas. Tatti teve três filhos do casamento com Mimi Fonseca, falecida em novembro de 2021: André, Gustavo e Paula Moreno. Tinha 4 netos.

Tatti é o escultor dos orixás do Dique do Tororó, que está no local desde 1998, cartão postal da capital baiana - sua obra célebre. Mas ele também é autor de tantas outras esculturas que falam muito pela cidade: as estátuas de Jorge Amado e Zélia Gattai, além da imponente imagem de Iemanjá no largo de Cira, ambas no Rio Vermelho; as esculturas em homenagem a Mãe Stella na avenida que leva seu nome, em Stella Maris.

Ainda em Salvador, também há obras do artista no Jardim dos Namorados. E ele foi além, com trabalhos no Lago Paranoá, em Brasília; nos jardins da Estação Tucuruvi, no Metrô de São Paulo; e um Cristo Redentor de tamanho similar ao original carioca, mas, no seu caso, feito em Lima, no Peru.

Professor e historiador especialista na área da Cultura Material e Iconografia, Rafael Dantas resume bem o trabalho de Tatti era um artista de obras públicas. Livres e representativas. “Um dos últimos representantes de um cenário de atuação artística que marcou a ideia de baianidade entre os anos 1980 e 1990. Tatti conseguiu marcar uma estética muito própria, com muita influência do lado afro, sendo representado ali pelos Orixás do Dique do Tororó, mas não só por isso. Ele tinha um modo muito especial de representar a Bahia”, explica o historiador.

O artista gostava de trabalhar com materiais imponentes e suportes diferenciados como fibra de vidro, ferro e aço. Matérias-prima duráveis e resistentes, que davam uma boa ideia de como Tatti gostava de fazer sua arte para a posteridade - buscando a imortalidade inerente ao trabalho artístico.

“Tatti representou uma genialidade artística, é interessante perceber isso porque o artista pode ir, mas suas obras ficam. Ele fica eternizado na cidade de Salvador e na Bahia. É uma notícia muito triste e é importante que tanto município quanto o Estado façam homenagens a esse artista que tanto contribuiu”, defende Rafael.

Presidente da Fundação Gregório de Mattos, Fernando Guerreiro lamentou a morte do artista e garantiu que sua passagem foi definitiva. “Tatti criou uma obra única, inimitável, com uma forte relação com nossa ancestralidade africana. Deixa muita saudade do seu jeito brincalhão, alto astral, sempre com uma ideia nova na cabeça. Morre o artista, fica a obra e a obrigação de preservá-la”, disse. O governo do estado decretou luto oficial nesta quinta-feira (14) em todo o estado.

Santos e orixás

Conhecido pela temática do candomblé, Tatti foi aluno de Mário Cravo Jr. num curso livre na Escola de Belas Artes da Ufba, em 1968. Em 1970, já estava fazendo a sua primeira exposição em Salvador. De lá para cá, levou sua arte para várias capitais brasileiras e participou de mostras em países como França, Portugal e Holanda.

Ironicamente, ele iniciou sua carreira aos 12 anos como um santeiro católico. É o que relembra o amigo e biógrafo Claudius Portugal, autor do livro A Arte de Tatti Moreno, lançado em 2016 para comemorar o meio século de trabalho do artista plástico.

“A primeira fase de escultor dele é fazendo santos e depois ele passa para outras vertentes, como instrumentos musicais, que particularmente gosto muito, até chegar aos orixás”, relembra Portugal, que também contou outras curiosidades sobre o homem de jeito dócil e que andava com um tapa-olho de metal característico.

Por exemplo: além de artista plástico, Tatti era professor de capoeira, ofício que também era exercido por seu irmão, Tutti. "Nós sempre fomos próximos. Eu conheci Tatti ainda menino porque ele era professor de capoeira, tanto ele quanto Tutti que é baterista. Ele era professor de capoeira no Comcena, no CenaVox. Fui morar fora e quando voltei, voltamos a nos ver. Quando ele resolveu fazer esse livro com sua biografia artística, me convidou para escrever e assim o fiz, pegando os pontos que mais eram ressaltados", contou.

Quem conviveu com Tatti relata que era um homem de personalidade doce e que adorava viver. A vida era algo precioso e por isso ele valorizava tanto. Gostava de viver e deixar viver, talvez até por isso tenha despertado a fúria de setores conservadores, mais evangélicos, com seus trabalhos represetando orixás, por exemplo.

Odiava trânsito ruim e sempre fazia questão de expressar seu descontentamento ao enfrentar uma via engarrafada. Isso só não o chateava mais do que esquecer nomes - o que classificava como um defeito horrendo.

"Todos os prazeres do viver ele era afeito. Então, era uma pessoa que viveu muito a cidade, essa baianidade que ficou folclorizada depois nos botequins, na noite, na vida baiana. Ele ia das camadas mais populares às mais sofisticadas e ricas da cidade. Frequentava as duas pontas e isso dava a ele uma alegria de viver muito grande", relembrou Claudius.

Xirê no Dique

Os Orixás do Dique, provavelmente a criação que mais simboliza a obra de Tatti Moreno, foram inaugurados em 2 de abril de 1998. São doze esculturas, sendo que oito delas ficam no espelho d'água, enquanto outras quatro ficam na terra. Na água, estão representados Oxalá, Xangô, Oxum, Iansã, Ogum, Iemanjá, Nanã e Logun-Edé. Em terra, Oxossi, Eua, Oxumaré e Ossain.

O projeto artístico fazia parte da revitalização do Dique do Tororó, durante o governo Paulo Souto. Tatti levou 16 anos tentando emplacar o projeto, e conseguiu com a intermediação de Antônio Carlos Magalhães, que na época era senador. A revitalização incluiu a despoluição da água e instalada uma fonte luminosa onde ficam os orixás.

A inauguração teve presença de autoridades e artistas da axé music. “O Dique é a primeira grande obra que dá início aos preparativos da cidade para o terceiro milênio e para a comemoração dos seus 450 anos”, disse ao CORREIO, no dia da inauguração, o Secretário de Planejamento, Luiz Carreira.

Alexandre San Goes, que escreveu uma dissertação de mestrado sobre os Orixás do Dique, observa em seu texto que outras regiões da cidade foram contempladas com a temática afro-brasileira: os Correios da Av. Paulo VI; o Parque de Pituaçu; o Largo de Santana; o Parque das Esculturas; o Centro da Ancestralidade na Av. Oceânica; a casa de Yemanjá, no Rio Vermelho; a Sereia de Itapuã e a Praça de Mãe Runhó no Engenho Velho da Federação.

Publicado em Entretenimento