Homicídios em Salvador e RM envolvem arma de fogo em 85% dos casos
Em uma manhã comum de sábado, o agente penitenciário Marival Matos, 49, tomou café da manhã com as duas filhas e saiu para encontrar amigos em uma barraquinha no bairro da Cidade Nova, em Salvador. Distraído, a atenção de Marival acendeu quando dois homens em uma moto gritaram seu nome e efetuaram disparos contra ele. O agente não resistiu aos ferimentos.
“Meu pai era uma pessoa extremamente festiva, mas nunca foi de brigar. Era quem apaziguava. Ele teve possibilidade de ter arma de fogo, chegou a cogitar, mas conversando com minha mãe eles entenderam que […] não era adequado. O que é irônico porque veio a falecer por arma de fogo”, recorda a filha mais nova de Marival, a estudante de direito Narriman Matos, 23. Segundo a caçula, o pai foi morto por trabalhar em penitenciária.
A morte de Marival cruza com tantas outras que acontecem no estado da Bahia por meio de um só objeto: a arma de fogo - principal recurso utilizado em homicídios no estado. Em Salvador e na Região Metropolitana (RMS), o instrumento responde por 85% dos homicídios, revela a edição 2022 do levantamento Violência Armada e Racismo do Instituto Sou da Paz. No interior do estado, 78% dos homicídios foram causados pelo objeto. Os índices ultrapassam a média nacional (71%, em 2020) e abrangem o período 2012-2020.
Para o coordenador Luiz Lourenço, do Laboratório de Estudos em Segurança Pública, Cidadania e Sociedade (Lassos) da Universidade Federal da Bahia (Ufba), o número é resultado da facilitação do acesso às armas de fogo. Como consequência, há proliferação do uso do instrumento e aumento de crimes violentos.
“Teve série de quedas de protocolos para compra de armas, hoje podem adquirir armas mais potentes e letais.[Assim como o recurso pode] ser subtraído e cair na mão de criminosos”, associa o coordenador do Lassos.
A quantidade de armas novas registradas na Bahia deu um salto nos últimos quatro anos. Nos três primeiros meses de 2019, foram 400 registros novos de armas de fogo no estado. Em 2022, o número cresceu para 1.363, o que representa um aumento de 240%, segundo dados da Polícia Federal. Desse total, 80% dos processos são feitos por pessoas comuns que desejam andar armadas
Na contramão, o professor de direito e especialista em políticas e gestão em segurança Antônio Melo relaciona a alta participação de armas de fogo em homicídios com o crescimento do crime organizado na capital e estado.
“Essas armas utilizadas na maioria dos crimes por organizações criminosas são ilegais, não são armas subtraídas do cidadão. Ingressam do território vindas em sua maioria de outros países”, argumenta. Ele estima que dentre as armas de fabricação nacional apreendidas do crime organizado, apenas 30% possuem registro legal, no entanto, foram parar na ilegalidade.
Polícia apreendeu média de 13 armas por dia em 2022 na Bahia Foto: Divulgação
Outras armas
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, 76% das mortes violentas intencionais no Brasil em 2022 foram por arma de fogo, 17,6% por arma - instrumento constituído de lâmina de qualquer material cortante, como espadas, adagas, navalhas e arpões - e 6,4% por outros recursos.
Para Luiz Lourenço, do Lassos, a arma de fogo é a que mais potencializa a violência interpessoal, tendo só a finalidade de aniquilar. “O erro é pensar que vai dar garantia de segurança, mas [...] quem possui arma de fogo é alvo potencial”, avalia. Já para Antônio Melo, “as armas em si não são a encarnação do mal, o problema é o uso que se faz dela”.
O professor da Ufba e autor de diversos trabalhos na área de segurança pública Sandro Cabral preconiza que é competência de toda esfera pública, da federal até municipal, trabalhar em conjunto. Isso porque o cenário da Bahia é apenas extensão do nacional.
A Bahia é o 5º estado do país com mais homicídios causados por armas de fogo, só perdendo para Ceará (92% de uso de armas de fogo em homicídios na capital), Rio Grande do Norte (89%), Sergipe (88%) e Paraíba (86%). Em média, nas capitais e regiões metropolitanas do Brasil, a cada 4 homicídios, 3 envolvem armas de fogo.
“Segurança pública é responsabilidade coletiva. É do governo federal ao fazer leis que podem ter maior controle sobre armas, controle de fronteiras. É responsabilidade do governo estadual porque maior parte das forças policiais estão [lá] e também dos municípios que, além da guarda municipal, tem desde instalação de câmeras até troca de informação por meio de conselhos municipais de segurança”, sugere.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA) informou que ações policiais em toda a Bahia retiraram das ruas uma média de 13 armas por dia em 2022 e entre janeiro e novembro as mortes violentas recuaram 8,9%. na comparação com o mesmo período do ano passado. A instituição espera que a política adotada nos últimos anos, que facilitou o acesso a armas de fogo de maneira exacerbada, seja revista.
A reportagem do CORREIO também solicitou posicionamento da Polícia Federal, mas não recebeu retorno até fechamento da matéria.
Número de homens negros mortos por arma de fogo é mais que o dobro do número de homens não negros
Na Bahia, o número de homens negros mortos por arma de fogo é mais que o dobro do número de homens não negros. A taxa de homens negros mortos por arma de fogo no estado é de 93,6, enquanto a de não negros é de 44,0. O estado é o 4º no país com a maior taxa de homens negros mortos por armas de fogo e perde apenas para Ceará, Rio Grande do Norte e Sergipe. É o que mostra o levantamento do Instituto Sou da Paz.
Marival Matos, o pai de Narriman, alvo de tiros quando estava com amigos, era um homem negro. A filha acredita que a questão racial atravessa toda narrativa de sua vida, sobretudo, na limitação das oportunidades dadas devido justamente pela cor da pele.
“Se ele não fosse um homem negro, dada inteligência que tinha, ele teria meios para não estar no meio em que a gente se encontrava no momento em que ele faleceu”, diz Narriman sobre a renda familiar na época.
Segundo especialistas, os números apresentados pelo instituto são coerentes com a realidade de desigualdade racial vivida no Brasil e, além disso, a cultura armamentista agrava o cenário. Os números são resultado do processo histórico brasileiro, mas também da intensificação da rede de ódio ampliada nos últimos anos.
Entenda o que o Espírito Santo fez para derrubar índices altos de homicídios e o que a Bahia pode aprender com o vizinho
O ano era 2009 e o Espírito Santo vivia o ápice da onda de assassinatos. À época, foram registrados 2.034 homicídios, 58 vítimas para cada 100 mil habitantes, mais que o dobro da média nacional, calculada em 27. O que colocava o estado entre as primeiras posições no ranking do Atlas da Violência. Uma década depois, despencou para a 13ª posição, ao reduzir em 47,5% os crimes letais. Enquanto o vizinho do Sudeste caminhava em uma direção, a Bahia pegava o rumo contrário, com alta de 12,6% e cinco anos seguidos como campeão nacional em números absolutos de mortes violentas. A questão não é o quanto, mas porque ambos tomaram rotas inversas no mesmo período.
Para encontrar explicações, é preciso antes passear pela história recente do Espírito Santo no combate à violência. À primeira vista, salta aos olhos a decisão do governo capixaba de não restringir a política para a área de segurança pública. Algo que a Bahia vem fazendo ao longo dos últimos anos, ao concentrar todos os esforços na guerra contra as drogas, opção criticada, de forma quase unânime, por especialistas com expertise no tema.
Como se baseasse o enfrentamento da criminalidade no modelo típico de uma orquestra, os capixabas apostaram de fato na articulação entre secretarias e órgãos do estado, priorizando a implementação de ações e projetos voltados tanto ao combate quanto à prevenção da violência. Sobretudo, com a ampliação do acesso aos serviços públicos básicos e promoção massiva da cidadania em regiões caracterizadas por altos índices de vulnerabilidade social e criminalidade.
No pacote de ações, o Espírito Santo apostou alto em políticas voltadas à juventude, com destaque para a criação de 136 escolas em tempo integral. Nelas, a parcela mais jovem foi privilegiada com reforço escolar, cursos profissionalizantes, apoio à prática de esportes e estímulo às atividades culturais e artísticas. Em movimento simultâneo, investiu na construção de centros para acolher dependentes químicos e auxiliar seus familiares.
Tais iniciativas integram o coração do Programa Estado Presente, lançado em 2019 pelo governo capixaba. Mesmo com pouco tempo de nascido, o conjunto de ações reduziu drasticamente os índices de violência e criminalidade. Especialmente, a grande dor de cabeça para as autoridades de lá: os crimes letais intencionais - homicídios dolosos, feminicídios, latrocínios e lesão corporal seguida de morte.
O Espírito Santo não é o único exemplo bem sucedido na batalha do poder público contra o crime. Outros estados também conseguiram derrubar os índices de mortes violentas em um intervalo de dez anos. É o caso de São Paulo (-48,7%), Distrito Federal (-45,6%), Rio de Janeiro (-33,8%) e Mato Grosso do Sul (- 32,3%), de acordo com o mais recente balanço do Atlas da Violência, portal que reúne, organiza e disponibiliza informações sobre a dinâmica da criminalidade no Brasil, sob a coordenação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Semelhança de modelos
Em comum com o Espírito Santo, os outros três estados e o Distrito Federal também jogaram todas as fichas em programas de enfrentamento à violência que foram além do combate ao crime pela polícia. De modo semelhante, focaram na integração entre os mais diversos órgãos da administração estadual e, mais importante, na atuação permanente em comunidades afetadas por altas taxas de assassinatos, através da expansão da oferta de serviços públicos essenciais.
As ações ostensivas e táticas das forças de segurança foram tratadas por esses estados como parte fundamental, mas não como a única arma para frear o crime. Era exatamente o que previa o Pacto pela Vida, programa adotado em 2011 pelo governo baiano, que copiou o modelo implantado com relativo sucesso em Pernambuco. Ao ser lançado, a promessa era esforço máximo para reduzir os crimes contra a vida.
Após 11 anos, a realidade foi bem diferente da que havia sido projetada no início da segunda de quatro gestões consecutivas do PT à frente do governo do estado. Nem o hoje senador Jaques Wagner nem o sucessor, Rui Costa, obtiveram algum resultado positivo contra a violência. Pelo contrário. Em 2006, ano que antecedeu a chegada dos petistas ao poder, a Bahia somou 2.881 assassinatos, com taxa de 23,7 homicídios por 100 mil habitantes, menor que a média nacional de 26.
Porém, os números entraram em trajetória ascendente já em 2007, quando Wagner iniciou o primeiro mandato como governador. Naquele ano, foram 3.659 crimes letais. Desde então, aumentaram exponencialmente, apesar de reduções pontuais. Mesmo assim, nunca deixaram de ocupar as primeiras posições da tabela.
Visão limitada
“O fato de ter um programa por si não vai solucionar o problema se não houver compreensão bastante ampla. É imprescindível entender a fundo o problema. A política de segurança pública no Brasil foi feita quase sempre no imediatismo: colocar mais policiais, mais armas, mais viaturas. Ou seja, os mesmos processos que colocaram o Brasil como um dos países mais violentos, com 10% dos homicídios que ocorrem no mundo. Um desastre”, destacou o secretário estadual de Governo do Espírito Santo, Álvaro Duboc.
“Então, o que foi que fizemos aqui? Mapeamos as regiões tidas como as mais violentas e fomos atrás das condicionantes de vulnerabilidade dos jovens nesses territórios. E a educação tem um papel fundamental nisso”, acrescentou Duboc. De acordo com o secretário, o estado tinha 38 escolas de tempo integral em 2018. “Hoje, temos quase 140, 60% delas em municípios e bairros que apresentam maiores índices de violência”, emendou.
A educação, entretanto, foi parte da estratégia. “Estruturamos também centros de referência para a juventude, a partir de ações e serviços com profissionais de múltiplas áreas, como psicólogos, terapeutas, pedagogos, cujo objetivo é analisar a trajetória de vida dos jovens do passado ao presente e planejar o futuro para eles. Após seis meses nesse processo, todos são encaminhados à fase de capacitação, para que cada um consiga atingir os objetivos traçados. Em seguida, é hora de incluí-los no mercado de trabalho”, assinalou Duboc.
O sucesso dos capixabas é usado como parâmetro nas avaliações sobre o fracasso da Bahia. “A experiência do Espírito Santo tem muito a ver com o Estado presente. É fazer com o que a cidadania alcance pessoas que muitas vezes não tiveram acesso às suas conquistas como cidadãs. Ou seja, o trabalho não foi preconizado somente por ações táticas da polícia, mas por iniciativas voltadas a ampliar a presença do Estado e dirigidas ao público que era normalmente alvo ou responsável pela autoria de homicídios, os jovens. Se a Bahia não virar a chave, se continuar agindo com a lógica da guerra, sempre se matará muita gente”, avaliou professor Luís Lourenço, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade (Lassos) da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
“A segurança pública aqui na Bahia não foi tratada de forma prioritária, como já vimos em outros estados que conseguiram baixar seus índices. O que assistimos aqui é uma política de enfrentamento isolada, que foca na dinâmica de guerra. Então, quando uma lógica de segurança pública é a lógica de troca de tiros, armamentos, prisão, a gente não consegue de fato ter resultado eficaz. E isso é sentido de diversas formas pelas pessoas que vivem na cidade”, pontuou a cientista social Luciene Santana, pesquisadora da Rede de Observatórios de Segurança.
Outro lado
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública afirma que homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte, nos últimos oito meses, estão em queda na Bahia. “Graças ao esforços continuados das forças da segurança, em outubro de 2021 foi computada queda de 10%, seguido por novembro com 15%, dezembro com 13%, janeiro com 21%, fevereiro com 4%, março com 3%, abril com 19% e maio com 13%. Cerca de R$ 1 bilhão está sendo empregado em tecnologia e novas estruturas em diversas cidades do estado. A pasta também tem investido em ampliação de efetivo, por meio de concursos públicos e aquisição de equipamentos”, diz a nota.
Rio e DF apostaram em novas políticas
Embora frequente diariamente o noticiário policial, o Rio de Janeiro conseguiu reduzir em 33,8% os índices de mortes violentas intencionais entre 2009 e 2019, de acordo com o Atlas da Violência. Procurado pela reportagem, o governo fluminense informou que adquiriu 21.571 câmeras operacionais portáteis para as forças de segurança, fiscalização e defesa civil. “Desde o último dia 30, 1.637 policiais militares de nove unidades que atuam no patrulhamento ostensivo começaram a usar as câmeras portáteis em seus uniformes. A aquisição faz parte do programa de transparência do governo do estado”, destacou.
Segundo a mesma nota, no primeiro quadrimestre deste ano, os homicídios dolosos (intencionais) chegaram ao menor patamar em 31 anos, no comparativo com o mesmo período do ano passado. A letalidade violenta recuou 23%, também o menor valor para os quatro meses desde 1991. Ao mesmo tempo, as mortes por intervenção de agente do Estado diminuíram 32%
Disse ainda que a Polícia Militar vem atuando em várias frentes para reduzir de forma consistente os índices de letalidade violenta e policial. “Entre essas ações, estão a criação de uma série de programas preventivos pautados pelo conceito de polícia de proximidade; investimento maciço em treinamento e em equipamentos de proteção individual; e aprimoramento dos protocolos de atuação operacional desenvolvidos conjuntamente com o Poder Judiciário”, conclui.
No Distrito Federal, também palco de redução bastante significativa de mortes violentas (-45,6%), a Secretaria de Segurança Pública disse, por nota, que o programa DF Mais Seguro foi o responsável pela queda dos crimes violentos letais e intencionais (CVLIs) de forma consecutiva, nos últimos anos. “Entre as estratégias do programa, estão o aperfeiçoamento constante dos processos de gestão, com meta, monitoramento e avaliação de resultado, e a atuação cada vez mais integrada entre as forças de segurança, com uso da tecnologia e inteligência”, afirmou.
Procurada, a Secretaria de Segurança Pública do Mato Grosso do Sul – estado que teve um redução de 32,3% - informou que o secretário estadual de Segurança estava em um evento nacional e que, por isso, não teria como responder à reportagem. O órgão garantiu ainda que não havia outro porta-voz do governo sul-mato-grossense. Já o governo de São Paulo não se pronunciou – o estado teve uma diminuição de 48,7% no número de assassinatos em 10 anos, o maior recuo de todo o país.
Pacto pela Vida acumula fracassos
Na tentativa de frear o crescimento da violência no maior estado do Nordeste, o então governador Jaques Wagner (PT) apostou alto no que, segundo ele, seria a grande arma para combater o crime. Surgia assim, em 2011, o programa Pacto pela Vida, à época, o principal programa do governo baiano na área de segurança pública. O objetivo anunciado por Wagner era a promoção da paz social, por meio de medidas que colaborassem com o trabalho policial.
O cardápio incluiria atendimento a usuários de drogas, prevenção ao uso de tóxicos e entorpecentes, atenção a famílias em situação de vulnerabilidade social, reinserção social de jovens, incentivo à prática de esportes e à cultura, capacitação para o mercado de trabalho e parcerias com projetos de organizações não governamentais (ONGs).
Para isso, foram criadas as Bases Comunitárias de Segurança (BCS), versões baianas do policiamento comunitário, cuja principal inspiração é a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio de Janeiro. “A base comunitária é um modelo fracassado. Tem unidades que têm dois policiais por dia, isso é fato. Tem base que está totalmente sucateada. A primeira (Calabar) tinha 120 homens no efetivo. Hoje, tem 20 no total”, declarou o deputado estadual Soldado Prisco (União Brasil), membro da Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública da Assembleia Legislativa da Bahia (Alba).
“O governo só investiu em propaganda e a criminalidade tomou conta. A PM na Bahia tem o mesmo efetivo há 25 anos. É feito concurso para repor a perda e não para aumentar. A Polícia Civil é sucateada. Polícia penal é algo inexistente, por que o estado não criou”, emenda o parlamentar, que representa a PM na Assembleia.