PMs que participaram de ação que deixou menino morto em Portão são afastados das ruas
Os policiais militares envolvidos na ação que terminou com a morte do garoto Gabriel Conceição, de 10 anos, em Portão, Lauro de Freitas, foram afastados das ruas enquanto o caso é apurado. As armas usadas por eles foram recolhidas. Essas foram algumas medidas anunciadas pelo secretário da Segurança Pública da Bahia, Marcelo Werner, que se reuniu na manhã desta terça-feira (25) com familiares do menino.
Participaram da reunião a mãe de Gabriel, Samile de Souza Costa, o tio, Rauan Souza, a avó Selma Santana de Souza, e a tia, Noemia de Oliveira dos Santos, acompanhados por uma advogada. Do lado do Estado, estavam presentes ainda o subsecretário Marcel de Oliveira, o chefe de gabinete, Nelson Gaspar, o Corregedor-Geral da SSP, Antonio Sérgio dos Anjos Mendes, e o comandante Regional de Policiamento da RMS, coronel Antônio Carlos da Silva Magalhães. O secretário da Secretaria de Trânsito, Transporte e Ordem Pública de Lauro de Freitas, Olinto Borri, também acompanhou a reunião.
Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), equipes da Polícia Civil estão buscando imagens de câmeras no bairro para ajudar no inquérito que apura o caso.
"De imediato, todos os protocolos para o início das investigações foram adotados. Também houve o recolhimento das armas de fogo utilizadas na ação e o afastamento dos policiais da atividade nas ruas. Nosso objetivo primordial é saber exatamente o que aconteceu para termos elementos suficientes para definir a autoria do disparo que vitimou Gabriel", afirmou o secretário Marcelo Werner.
O secretário Olinto também lamentou o caso. “A investigação é feita dentro dos princípios legais que norteiam as investigações. Os PMs envolvidos estão afastados e foram apresentados à Corregedoria. Então, tudo está sendo feito. É uma dor imensurável. Foi um fato lamentável, é uma criança de 10 anos”.
A Corregedoria-Geral da SSP também acompanha a apuração do caso.
Prefeitura cancela festa
A Prefeitura de Lauro de Freitas informou nesta terça-feira (25) que por conta da morte suspendeu todos os eventos festivos com trios e similares, bandas, cortejos cívicos e afins na cidade, de hoje, quando fui publicado o decreto, até a publicação de uma nova decisão. A decisão vale para eventos bancados com recursos privados e públicos.
O município iniciaria no sábado (29) as comemorações por conta da emancipação, com programação até a segunda-feira (31).
Com a suspensão dos festejos, fica apenas autorizada a realização da Missa de Emancipação, no dia 31 de julho, na Praça da Matriz, com o som da Orquestra Sinfônica de Lauro de Freitas e Coro Infanto-juvenil do Núcleo Neojiba e corais da igreja.
Morte
A Polícia Militar da Bahia emitiu nota de pesar sobre o falecimento de Gabriel Silva, garantindo que os agentes envolvidos na ação que vitimou o menino estão à disposição da Polícia Civil, responsável pela investigação do caso, bem com o armamento utilizado por eles.
De acordo com familiares do menino, PMs entraram atirando na Avenida Costa, onde fica a casa da família da vítima. Selma Santana, 51, avó de Gabriel, questionou a nota e pediu respostas concretas sobre o porquê dos PMs entrarem atirando em uma rua que, segundo ela, não tinha suspeito em confronto ou fugindo das guarnições.
"Estava comentando que as respostas que eles dão são todas de 'copia e cola'. Toda vez que acontece algo eles dizem o mesmo e a gente está cansado. Eles acham que, por se posicionarem de maneira firme, a gente vai aceitar. Mas não vai ficar assim, quem fez tem de ser responsabilizado e vamos buscar por justiça", garante.
Bahia apresenta a maior porcentagem de negros mortos por policiais
Já se passaram nove meses, mas parece que foi ontem. “O sofrimento é a mesmo. É uma mistura de dor e raiva pelo que fizeram com o meu primogênito”, desabafa a feirante Cassia Pereira, mãe de Ryan Andrew Pereira Tourinho Nascimento, de 9 anos. O garoto foi morto durante operação policial no dia 26 de março do 2020, no Complexo do Nordeste de Amaralina. O caso dele é um de muitos que constam de um terrível levantamento: a Bahia apresenta a maior porcentagem de negros mortos por policiais do Nordeste do país, 98%
O dado consta do novo boletim da Rede de Observatórios da Segurança, que será detalhado no lançamento, nesta terça-feira (14). As informações da pesquisa foram coletadas em seis estados através das secretarias estaduais de Segurança Pública e pedidos via Lei de Acesso à Informação (LAI). Segundo o levantamento, a Bahia, estado que possui como capital a cidade mais negra fora do continente africano, registrou no ano passado 607 mortes durante ações policiais, os chamados autos de resistência. Deste universo, as balas encontraram 595 corpos negros (pretos e pardos) contra 11 brancos e uma denominada de outra cor não especificada.
Em Salvador, todos os mortos pela polícia são negros, ainda segundo os dados da Rede. O estudo cita como exemplo as mortes de duas mulheres negras no Curuzu: Maria Célia de Santana, 73 anos, e Viviane Soares, 40. Elas conversavam na porta de casa quando foram atingidas. “E como essa lógica perversa é cotidiana, Viviane era tia do menino Railan Santos da Silva, de 7 anos, que foi morto por uma bala da polícia enquanto assistia ao futebol em um campo do bairro. A Bahia tem a polícia mais letal do Nordeste”, diz trecho do documento.
No ranking dos seis estados, a Bahia está à frente de Pernambuco – das 112 pessoas mortas pela polícia, 109 eram negras; Em seguida está o Ceará – 39 óbitos, 34 de pessoas de pele negra. No caso do Maranhão, foram 97 pessoas mortas em ações policiais no ano passado. Mas, de acordo com a pesquisa, o estado não monitora a cor da pele dos mortos pela polícia.
Chacinas
Em relação às chacinas, a Bahia tem o maior índice entre os estados do Nordeste monitorados pela Rede nos últimos dois anos, com 74 registros. Também fica na Bahia a cidade onde a polícia mais mata pessoas negras no país: Santo Antônio de Jesus. Esses dados e outros serão detalhados na apresentação do levantamento nesta terça (14).
O estudo diz ainda que a Bahia ocupa a terceira posição nacional de mortes de pessoas negras – fica atrás apenas do Rio de Janeiro (939) e São Paulo (488), que é o estado mais populoso do Brasil.
A reportagem procurou a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), para repercutir o estudo. Em nota, a SSP ressaltou que "a polícia é treinada para usar armas letais somente em situações de legítima defesa, após esgotar todas as tentativas de capturar suspeitos". O órgão acrescentou que "as operações e patrulhamento diário são promovidos levando em consideração a taxa de crimes e também denúncias de moradores".
Sobre capacitação, a SSP informou que tem investido nessa área e que está em fase de testes das câmeras corporais que "protegerão os policiais e também as pessoas abordadas".
Polícia Violenta
O coordenador da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia, Dudu Ribeiro, comentou os números: “É uma demonstração nítida da política de distribuição de violência no Estado: ela tem cor! Isso já foi apontado em outros estudos da Rede e mostra que a polícia da Bahia continua agindo sobretudo contra a população negra, sem, no entanto, reduzir os índices de violência”.
Segundo ele, os autos de resistência são em grande maioria nos bairros periféricos. “É uma atuação violenta baseada nessa lógica da guerra às drogas e que na verdade não tem impactado, não tem demonstrado nenhum tipo de eficiência. Veja como exemplo as ações na Pituba. Lá, há apreensões de drogas maiores em relação aos bairros periféricos da cidade, mas o índice de mortes em ações policiais quase não existe, diferente da região do subúrbio, Cajazeiras, Beiru, Nordeste de Amaralina, onde há mais mortes nas ações policiais do que apreensões de drogas. Na verdade, isso não é uma guerra ao tráfico e sim uma guerra à população negra”, pontua Ribeiro.
Integrante do coletivo Incomode, Ingrid Santos Sena falou da importância do estudo. “Esta é mais uma forma de luta contra esses abusos do Estado. Tornar esses dados públicos é a forma de gritar que é preciso combater a triste realidade que, infelizmente, tem endereço e cor: os negros periféricos”, declarou ela, que teve um primo morto por policiais em 2016 no Complexo de Amaralina. O Incomode atua na luta contra o hiperencarceramento e o extermínio da juventude negra do subúrbio ferroviário de Salvador.
Laudo
Além da dor diária, a feirante Cássia Pereira tem que lidar com a morosidade do processo de investigação da morte de seu filho de apenas 9 anos. A mãe de Ryan disse que o inquérito sobre a morte do filho está parado, aguardando um laudo do Departamento de Polícia Técnica (DPT). “A polícia disse que o caso está parado aguardado o laudo das armas dos policiais. Até agora não ficou pronto, mas o meu sofrimento é diário”, diz.
Ryan Andrew brincava com os amigos quando policiais militares chegaram atirando na rua no dia 26 de março, no Vale das Pedrinhas, um dos bairros que compõem o Complexo do Nordeste. Após a perda do filho mais velho, ela deixou o local onde vivia.
“Depois que ele morreu, tive que deixar a casa de minha mãe, onde morávamos. Tudo me lembrava ele. Bastava entrar na rua e ver os coleguinhas dele, para uma dor imensa me tomar por completo”, disse ela, que preferiu não revelar o atual endereço por questões de segurança.
Ela disse que quer justiça, apesar de temer represálias. “Mas tenho que continuar lutando, porque tenho outro filho, um menino de seis anos que precisa de mim. Mas não está fácil conviver com essa dor. Tenho muita raiva, ódio, pois vejo eles [policiais] passando por aqui como se nada tivesse acontecido. Temo pelo meu outro filho e meus sobrinhos”, afirma.
A Policia Militar (PM) não respondeu até o fechamento desta edição, às 23h de ontem. Já o DPT disse que só poderia responder sobre o atraso no laudo hoje, após a publicação dessa reportagem.
A Rede
Sete organizações, de sete estados, conectadas com um objetivo: monitorar e difundir informações sobre segurança pública, violência e direitos humanos. A Rede de Observatórios da Segurança é uma iniciativa de instituições acadêmicas e da sociedade civil da Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo dedicada a acompanhar políticas públicas de segurança, fenômenos de violência e criminalidade nesses estados.
Com metodologia inspirada na bem-sucedida experiência do Observatório da Intervenção, projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), que monitorou as ações das Forças Armadas no Rio de Janeiro durante a intervenção federal em 2018, a Rede acompanha 16 indicadores, além dos dados oficiais e orçamentos governamentais que são apresentados ao público em relatórios, infográficos, seminários e encontros.
Além do CESeC, as organizações que formam a rede são: Iniciativa Negra Por Uma Nova Política de Drogas, da Bahia; Laboratório de Estudos da Violência (LEV), do Ceará; Rede de Estudos Periférico (REP), do Maranhão; Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), de Pernambuco; Núcleo de Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes e Jovens (NUPEC), do Piauí; Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), de São Paulo.
Outra dimensão do trabalho da Rede é a criação de diálogo com pesquisadores de segurança pública; ativistas de favelas e periferias; ONGs e movimentos sociais; grupos de mães e familiares de vítimas de violência policial; movimento negro; movimento LGBT; mandatos de parlamentares; Judiciário e Ministério Público; tecnologia e transparência; e comunicação.
ONU pede fim de impunidade da violência policial contra negros
Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado nesta segunda-feira (28), que analisou a justiça racial após o assassinato do norte-americano George Floyd em 2020, apela a todas as nações para que ponham fim à "impunidade" das forças de segurança que violam os direitos humanos dos negros. A chefe dos Direitos Humanos da ONU pede, no documento, que todo o mundo colabore para ajudar a acabar com a discriminação, a violência e o racismo sistêmico contra os afrodescendentes e que façam "as pazes".
Desenvolvido após o assassinato de George Floyd por um policial norte-americano em Minneapolis, em maio de 2020, o relatório da ONU diz que a discriminação racial e o uso de força excessiva pela polícia estão enraizados nos Estados Unidos (EUA), na Europa e na América Latina. Michelle Bachelet, a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, mostra, com o documento, uma visão mais abrangente dos maus-tratos enfrentados pelos negros ao longo de séculos, principalmente por causa do comércio transatlântico de escravos, e pede uma abordagem "transformadora" para os dias de hoje.
A agência da ONU analisou 190 assassinatos de africanos e afrodescendentes por agentes de autoridade em todo o mundo e concluiu que os policiais "raramente são responsabilizados" por matar pessoas de origem africana, principalmente devido a investigações "deficientes" e à falta de vontade de reconhecer o impacto do racismo estrutural.
Para Bachelet, o racismo estrutural cria barreiras ao acesso das minorias a empregos, à saúde, à habitação, à educação e até à Justiça.
"Estou pedindo a todos os Estados que parem de negar e comecem a desmantelar o racismo, para acabar com a impunidade e construir confiança, para ouvir as vozes dos afrodescendentes e para confrontar legados do passado e compensá-los", escreveu a alta comissária no relatório.
Essas compensações, acrescentou, "não devem ser apenas equiparadas a indenizações financeiras", mas devem incluir a restituição, a reabilitação, o reconhecimento de injustiças, os pedidos de desculpas, a memorialização, as reformas educacionais e "garantias" de que tais práticas não se repetirão.
Além do caso polémico de Floyd, são citados mais seis casos no relatório, como o de Kevin Clarke que morreu após ser detido por policiais em Londres, em 2018. À época, o juiz considerou que Clarke, que já em 2002 tinha sido diagnosticado com esquizofrenia paranoica, concluiu que o uso inadequado de forças pela polícia levou à sua morte.
Os casos restantes citados incluem um adolescente afro-brasileiro, de 14 anos, morto a tiros numa operação policial antidrogas em São Paulo, em maio de 2020, e um francês de origem maliana, de 24 anos, que morreu sob custódia policial em julho de 2016.
Racismo e discriminação
A agência da ONU para os Direitos Humanos foi incumbida, em junho de 2020, de redigir um relatório aprofundado sobre o racismo sistêmico contra africanos e afrodescendentes. Aproveitando a análise intensa sobre racismo em todo o mundo e o impacto nos afrodescendentes, como nos casos de assassinatos de negros desarmados nos Estados Unidos, o relatório analisou violações dos direitos humanos, respostas dos governos a protestos pacíficos antirracismo e responsabilização e compensação das vítimas.
"Há hoje uma oportunidade importante para alcançar um ponto de inflexão para a igualdade racial e a justiça", diz o relatório, que apela aos países para que acelerem ações a fim de acabar com a injustiça racial, a pôr fim à impunidade nas violações de direitos pela polícia, a garantir que os afrodescendentes e aqueles que falam contra o racismo sejam ouvidos e que os "erros do passado" sejam enfrentados por meio de responsabilização e compensação.
"O racismo e a discriminação racial contra africanos e afrodescendentes estão frequentemente enraizados em políticas e práticas baseadas na degradação do status dos indivíduos na sociedade", acrescenta o relatório.
Segundo a investigação, que vem sendo feita desde o ano passado, o problema prevalece mais em países com legado de escravatura, de comércio transatlântico de africanos escravizados ou de colonialismo, o que resultou na fixação de grandes comunidades de descendentes de africanos.
"O racismo sistêmico precisa de resposta sistêmica. É preciso haver uma abordagem abrangente, em vez de fragmentada, para desmantelar sistemas enraizados durante séculos de discriminação e violência. Precisamos de uma abordagem transformadora que aborde as áreas interconectadas que impulsionam o racismo e levam a tragédias constantes, totalmente evitáveis, como a morte de George Floyd", argumentou Michelle Bachelet.
Famílias "traídas"
Durante a análise dos casos de mortes sob custódia policial em diferentes países, o relatório identificou "semelhanças impressionantes" e padrões - incluindo os obstáculos que as famílias enfrentam para ter acesso à Justiça. O relatório observa que os dados disponíveis mostram "um quadro alarmante de impactos desproporcionais e discriminatórios em todo o sistema sobre os afrodescendentes quando abordados pelas autoridades policiais e com o sistema de Justiça criminal em alguns Estados".
Muitas famílias "sentiram-se continuamente traídas pelo sistema", citam "uma profunda falta de confiança" e, "muitas vezes, recai sobre as vítimas e os familiares lutar pela responsabilização sem o apoio adequado".
"Várias famílias me descreveram a agonia que enfrentaram ao lutar pela verdade, a Justiça e a compensação, e a angustiante presunção de que os seus entes queridos de alguma forma 'mereciam'", disse Bachelet. "É desanimador que o sistema não esteja preparado para os apoiar. Isso tem de mudar".
Investigações, processos, julgamentos e decisões judiciais muitas vezes deixam de considerar o papel que a discriminação racial, os estereótipos e o preconceito institucional podem ter nas mortes sob custódia, acrescenta o relatório.
Com a investigação, o objetivo do relatório é transformar essas abordagens numa resposta mais sistêmica por parte dos governos para lidar com o racismo, e não apenas nos Estados Unidos. Casos semelhantes são denunciados também em cerca de 60 países, incluindo a Bélgica, o Brasil, Reino Unido, Canadá, a Colômbia e França, entre outros.
"Não conseguimos encontrar um único exemplo de um Estado que tenha considerado totalmente o passado ou explicado de forma abrangente os impactos na vida dos afrodescendentes hoje", escreveu Mona Rishmawi, que lidera uma unidade contra a discriminação na ONU. "A nossa mensagem, portanto, é que essa situação é insustentável".
Bahia é o estado onde morrem mais negros em operações policiais
O barbeiro Davi Oliveira tinha 23 anos quando foi assassinado no último domingo, no município de São Félix, no Recôncavo. O empacotador Vitor Santos Ferreira de Jesus tinha 25 anos quando foi morto no bairro de Pirajá, em Salvador, em junho. São casos distantes no tempo e no espaço, e não teriam muito em comum não fosse o fato das vítimas serem negras e terem perdido a vida durante operações policias. Uma infeliz coincidência, diriam alguns, uma coincidência que corre em 97% dos casos na Bahia, segundo pesquisadores.
Um relatório elaborado pela Rede de Observatórios da Violência, divulgado nesta quarta-feira (9), apresenta dados sobre mortes ocorridas durante operações policiais em cinco estados brasileiros. Rio de Janeiro lidera em número absoluto de mortes, mas quando se observa a proporção de negros assassinados nessas ações é a Bahia quem lidera do ranking. Foram 650 casos entre janeiro e dezembro de 2019, com 474 vítimas negras. O número pode ser maior já que em 161 situações a cor da vítima não foi informada. Brancos somam 15 ocorrências ou 3% do total.
O que se espera é que inocentes não sejam mortos em nenhuma situação, independentemente da cor, e que os suspeitos sejam presos e levados a julgamento. Então, por que existe essa diferença entre negros e brancos?
A questão é a proporcionalidade, diriam outras pessoas. Afinal, a população de pretos e pardos na Bahia é maior que as do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Ceará, onde a pesquisa também foi realizada, mas não é bem assim. A pesquisa mostra que o número de baianos que se autodeclaram dessa raça é de 76%, então, os estudiosos se debruçaram sobre o motivo para essa diferença de 21% no número de mortes.
Para os pesquisadores que elaboraram o relatório, as operações são realizadas em áreas precisas da cidade e voltadas para uma população específica. Além disso, a política de segurança pública atual, e questões como desigualdade social, problemas de acesso à educação e à saúde corroboram com o cenário, e esse caldeirão resulta no principal fator dessa discrepância: o racismo. A integrante da Rede de Observatórios da Bahia e coordenadora de pesquisa da ONG Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, Luciene Santana, é quem explica.
“Quando analisamos os dados percebemos que tanto no imaginário das pessoas como o que vemos recorrentemente na mídia, é que pessoas negras são as que mais morrem em operações policiais. Por isso, o nome do nosso relatório é ‘A cor da violência policial: a bala não erra o alvo’, porque ela atinge majoritariamente pessoas negras. Pensando nessa estrutura do racismo, quem são essas pessoas e esses territórios que são passíveis de serem mortos e violentados? A Bahia, proporcionalmente, é o estado que mais mata negros em operações policiais”, afirmou.
Dificuldades na pesquisa
Os dados que serviram de base para a elaboração do relatório foram fornecidos pelas Secretarias de Segurança Pública dos estados, com exceção da Bahia. Algumas pastas entregaram informações parciais e que foram complementadas pelos pesquisadores. A Bahia foi a única que não forneceu nenhum dado. Luciene contou que usou informações repassadas por organizações parceiras da Rede, porque os pedidos feitos diretamente ao governo, via Lei de Acesso à Informação, não foram atendidos.
“Houve uma dificuldade muito grande em obter esses dados, inclusive o que mais no assusta em relação à Bahia é que a gente não consegue ter essas respostas”, disse. “Nós entendemos que é através dos dados da segurança pública que a gente analisa onde podemos melhorar, a parir do conhecimento desses dados estatísticos. Então, se o governo não quer divulgar esses dados nós temos dificuldade em conhecer a realidade dos estados”, afirmou.
A Rede de Observatórios da Segurança é a única iniciativa que monitora operações policiais. O acompanhamento é feito desde 2018, no Rio de Janeiro, e de junho de 2019, nos cinco estados que formam o grupo. Há dois dias, o CORREIO mostrou que o mês de novembro foi o mais violento de 2020, com 127 homicídios registrados pela SSP.
Contexto
Para o doutor em Sociologia e pesquisador da Rede e do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC), Ricardo Moura, existem falhas na política de segurança pública adotada pelos estados. Ele destacou a necessidade de se rever procedimentos e práticas, e frisou que é importante discutir o assunto.
“A gente precisa denunciar e colocar essa pauta [em discussão]. A gente não pode permanecer naturalizando isso, então, o trabalho da Rede é muito importante nesse sentido, porque ele coloca essa questão em pauta, levanta esse questionamento”, disse.
Ele contou que a atuação policial acontece dentro de um contexto que potencializa a morte da população negra, e que esses fatores precisam ser considerados. No Ceará, negros e partos são 66,9% da população, mas representam 87% dos mortos.
“Essa atuação da polícia ocorre em meio a uma série de lacunas. As áreas onde essas intervenções se dão são justamente as áreas nas quais os serviços são mais precários, então, a presença do Estado não corre dentro de uma esfera de promoção de saúde, de prevenção, de educação, de assistência social, mas ela ocorre sob a mão pesada da polícia. Isso é muito característico da nossa sociedade, excludente e desigual”, afirmou.
Moura contou que quando se fala em segurança, geralmente, é entendido apenas como necessidade de mais repressão. “Há um termo do IBGE chamado assentamentos precários que são justamente as áreas onde os serviços são mais insuficientes, e quando você faz uma sobreposição dos locais de mortes por intervenção você percebe que eles coincidem exatamente com os mapas dos assentamentos precários”, contou.
Procurada, a SSP se posicionou através de nota. Confira na íntegra:
A Secretaria da Segurança Pública ressalta que as ações policiais são realizadas após levantamentos de inteligência e observação da mancha criminal. A SSP destaca ainda que todos casos que resultam em mortes são apurados pela Corregedoria e, existindo indício de ausência de confronto, os policiais são afastados, investigados e punidos, caso se comprove a atuação delituosa.
A Rede é um projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), com apoio da Fundação Ford, formada por cinco observatórios locais, mantidos em parceria com as organizações: Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD); Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop); Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC); O objetivo é monitorar e difundir informações sobre segurança pública, violência e direitos humanos. Clique e veja o relatório na íntegra.
Ranking em mortes absolutas em 2019:
RJ – 1.814 mortes;
SP – 815 mortes;
BA – 650 mortes;
CE – 136 mortes;
PE – 74 mortes;
Proporção de negros por estados:
BA – 76,5%
CE – 66.9%
PE – 61,9%
RJ – 51,7%
SP – 34,8%
Proporção de negros mortos em operações policiais:
BA – 96,9%
PE – 93,2%
CE – 87,1%
RJ – 86%
SP – 62,8%