O aparecimento de manchas de óleo nas praias do Nordeste completa um ano no domingo, 30 e até hoje a Marinha do Brasil não conseguiu apontar os culpados por um dos maiores desastres ambientais já registrados no país, com impacto nos estados nordestinos e em parte do sudeste. Na Bahia, pesquisadores do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (Ibio/Ufba) estimam que a natureza vai levar no mínimo 10 anos para se recuperar.
Em 30 de agosto de 2019, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) identificou os primeiros vestígios de petróleo cru em Conde e Pitimbu, na Paraíba. Até fevereiro deste ano, foram recolhidas 5.379,76 toneladas de resíduos na costa, diz o órgão.
Na Bahia, o óleo chegou em outubro do ano passado e atingiu Salvador no dia 10 daquele mês. O Ibama informou que 459,49 toneladas do petróleo cru foram retiradas das praias baianas até fevereiro. Na capital, 14 praias foram atingidas, das quais foram retiradas 139,581 toneladas do óleo, segundo a Empresa de Limpeza Urbana de Salvador (Limpurb). A Marinha diz que o óleo veio da Venezuela.
De acordo com o Francisco Kelmo, diretor do Ibio/Ufba, a situação no litoral norte está pior do que era antes do desastre ambiental. “Se os dados continuarem assim, acredito que 10 anos seja o mínimo e pode até ser pouco para que todos os animais se recuperem e voltem a ter as características populacionais de antes da vinda do óleo”.
Desde a chegada do óleo na Bahia, pesquisadores do laboratório de Kelmo estudam os impactos do material. As comparações das condições do oceano em Praia do Forte, Guarajuba, Ganipabu e Itacimirim após o desastre com o que era visto antes apontam que houve perda da biodiversidade, redução da densidade populacional e o aumento de doenças em corais da região.
Perdas irreparáveis
No momento crítico da chegada dos resíduos nas praias baianas, os pesquisadores detectaram uma perda imediata de 46,8% da biodiversidade no local. A situação só piorou com o passar dos meses, chegando a uma queda de 78,8%, em julho deste ano.
Quanto às diferentes espécies de invertebrados vivas, a quantidade caiu de 88 para 47 em outubro com a chegada das grandes manchas de óleo. Desde fevereiro deste ano, este número não ultrapassa 17. Neste caso, também não houve melhora, já que a população estimada está em um patamar mais baixo da época crítica do desastre.
Além da redução do número de espécies invertebradas, a densidade populacional sofreu com o petróleo cru. A região que antes possuía 466 indivíduos vivos a cada 35 metros quadrados de praia, passou a registrar apenas 151 animais invertebrados vivos em outubro. Em julho, eram em torno de 70 indivíduos vivos no mesmo espaço.
Corais branqueados
Quando estão doentes, os corais ficam branqueados. O óleo aumentou a ocorrência do problema. Segundo Kelmo, a estimativa anual média de branqueamento de corais era de 5% a 6% da população nas áreas estudadas. A porcentagem da enfermidade saltou para 51,7% com a chegada do óleo e, entre fevereiro até julho, esse número oscilou na casa dos 85%. “Não tivemos nenhum sinal de recuperação dos corais”, afirma.
Os dados são alarmantes por dois principais motivos, explica o diretor do Ibio/Ufba. De acordo com ele, o óleo chegou bem no período de reprodução das espécies, o que afetou a capacidade reprodutiva dos animais estudados. Além disso, resíduos tóxicos do material permaneceram no ambiente contaminando a vida marinha.
“É um situação extremamente grave. O período de reprodução anual dos animais vai de setembro a março. Isto causou um estresse nos indivíduos, o que afetou a sua capacidade reprodutiva e não permitiu uma melhora na população”, explica. “Aquele era um óleo diferente, com alta densidade e pesado. Como ele não flutuava, o que foi visto foi removido, mas o que chegou de noite, por exemplo, ficou enterrado na praia. Fontes de material contaminante ainda estão, lentamente, contribuindo para a perda da biodiversidade e a densidade de animais nas praias”.
Os animais invertebrados e os corais são importantes para o equilíbrio da vida marinha. Segundo Kelmo, os impactos do desastre podem reverberar na população de peixes, que são atraídos pelas cores dos recifes e retiram destes alimentação e abrigo.
“Os invertebrados são a base da cadeia alimentar. Eles servem de alimento para os peixes. Caso não haja a recuperação da população, pode faltar alimento para os peixes maiores, a pesca pode ser dificultada e faltar peixe no mercado”, diz o pesquisador, que explica que os peixes migram ao encontrar dificuldades para se alimentar.
Peixes e tartarugas
Não há indicativo de que a população de peixes da Bahia tenha começado a sofrer com a morte dos invertebrados, afirma o Presidente da Bahia Pesca, Marcelo Oliveira. De acordo com o gestor, o impacto inicial foi muito forte, mas o mercado regularizou.
“O monitoramento das áreas tocadas pelo óleo se faz necessário justamente para se ter ideia dessa evolução das espécies e da contaminação residual. Estamos realizando a coleta de amostras no estado, mas a pandemia do coronavírus inviabilizou o trabalho”, afirma Oliveira, que acredita que a redução da pesca e da poluição causadas pela pandemia pode ter compensado perdas do desastre.
Segundo o Projeto Tamar, a Fundação da entidade registrou no estado da Bahia o encalhe de 12 filhotes de tartarugas que interagiram com manchas de óleo. Além disso, dois filhotes oleados encontrados vivos foram reabilitados e liberados. Procurado para comentar os impactos do desastre, o Ibama não respondeu até o fechamento deste edição, às 23h.
Mais óleo
Meses após o aparecimento das manchas de óleo, novos resíduos emergiram em Salvador. O petróleo cru foi avistado em Stella Maris, Jaguaribe, Pituba e Piatã a partir de 26 de junho deste ano. Além de Salvador, novas manchas de óleo foram encontradas em junho em praias de Pernambuco, Rio Grande do Norte e de Alagoas.
Segundo nota técnica divulgada pela Marinha, coletas feitas em alguns pontos da região e analisadas pelo Laboratório de Geoquímica Ambiental do Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira apontam que material tem a mesma origem do óleo derramado em 2019 na costa brasileira.
Pesquisas do Instituto de Geociências da Ufba (Igeo) também identificaram que o material tem origem na bacia petrolífera venezuelana e aparenta ser o mesmo do grande desastre, mas as pesquisas de análise dos compostos para uma confirmação mais concreta acabaram sendo interrompidas por causa da pandemia, conforme conta Olívia Oliveira, diretora do Igeo.
Ironicamente, um ano antes de o derramamento acontecer, a Ufba havia desenvolvido uma solução premiada internacionalmente: uma espécie de bucha vegetal descartável capaz de aumentar em 20x a absorção de óleo. No entanto, a bucha não chegou a ser solicitada pelas autoridades para a promover a contenção do óleo.
“Nós demos a sugestão dessa biofibra ficar atrelada às redes nos estuários. Mas só que nós estávamos produzindo ela em escala de laboratório. Para ter isso em larga escala, que é o que seria necessário para conter o que aconteceu, a gente precisa ter parcerias governamentais e empresariais. A gente desenvolve, publica os papers, mas na hora de colocar em prática ficamos mais limitados”, comenta.
Inquérito feito pela Marinha não traz culpados
Uma das grandes perguntas em aberto sobre o derramamento de óleo no litoral nordestino é quem causou o desastre. Quase um ano após o começo do incidente, as investigações ainda estão em curso. A apuração do crime ambiental é conduzida pela Marinha e Polícia Federal.
Procurada, a PF se restringiu a responder que não comenta investigações em andamento. Já a Marinha afirmou que várias ações foram feitas na evolução da investigação e que entregou um relatório com as conclusões do trabalho científico realizado para a PF. “Os trabalhos permanecerão até que o responsável pelo crime ambiental seja identificado”, garantiu a Marinha em nota.
De acordo com a Marinha, o derramamento pode ter ocorrido a cerca de 700 km da costa, sem ser possível determinar o ponto de partida exato do material. Em nota, a força armada ainda aponta que o responsável pelo crime ambiental não se apresentou voluntariamente, nem prestou apoio para conter as manchas. Segundo o G1, o inquérito aponta que o petróleo cru trafegou submerso por 40 dias.
“A investigação, indicará, de forma oportuna, o culpado por essa grave agressão à Nação brasileira, tal certeza se deve ao apoio indispensável de cientistas, profissionais da área ambiental e militares que permanecem trabalhando para elucidar um complexo crime impetrado contra a nossa Pátria”, completou a Marinha no texto.
Ainda de acordo com o G1, a Marinha informou que a investigação teve início com um universo de cerca de mil navios como possíveis fontes do vazamento de petróleo. Ainda hoje, existem alguns suspeitos de terem cometido o derramamento.
A não identificação dos responsáveis pelo vazamento de óleo faz com que os custos da resposta e combate às manchas de óleo recaiam sobre o Executivo federal.
Segundo o G1, os trabalhos realizados pelo governo federal, das ações de resposta ao incidente até a investigação, custaram aos cofres públicos R$ 172 milhões. As informações foram obtidas pelo site por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
A Marinha diz que os trabalhos para elucidar o caso são complexos e envolvem seis áreas do conhecimento. Com base no desastre acontecido em 2019, o órgão trabalha para evitar que outro crime do tipo ocorra.
“Há a necessidade premente de investir no aprimoramento do monitoramento dos navios que transitam nas águas jurisdicionais brasileiras e nas suas proximidades, especificamente o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz), com a melhoria de sistemas de apoio à decisão e a aquisição/instalação de radares de médio/longo alcance”, diz a nota.
Em 20 de março deste ano, o coordenador Operacional do Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo desmobilizou a coordenação unificada das equipes envolvidas com ações de resposta.