Enquanto há falta de vacinas contra a covid-19 em algumas cidades baianas - a vacinação foi interrompida pela quinta vez em Salvador na terça-feira (6) - há pessoas que tomaram três doses do imunizante. Um estudo conduzido por pesquisadores de matemática de cinco universidades brasileiras, chamado ModCovid19, indicou que 2.038 pessoas tomaram três doses do imunizante na Bahia.
Esse número faz parte de um contingente de pessoas ainda maior que teriam burlado o Plano Nacional de Imunização: 2.902 pessoas tomaram, pelo menos, duas doses na Bahia e, ao todo, três ou mais doses da vacina.
Entram nessa conta - dos 2.902 - também pessoas tomaram só uma dose na Bahia e as outras duas injeções - ou até três - em outro estado. Há ainda outras tomaram cada dose em três estados diferentes, como aponta a planilha disponibilizada pelos pesquisadores.
Em 55 cidades baianas, há registro de indivíduos que tomaram as três doses no mesmo município. Em Ribeira do Amparo e Ouricongas, por exemplo, a situação é mais alarmante: uma pessoa em cada uma das cidades teria tomado quatro doses do imunizante.
A pesquisa também apontou várias inconsistências nos dados da vacinação do novo coronavírus no Brasil. O Ministério Público da Bahia (MP-BA) já está ciente do caso e informa que os infratores serão punidos, também, por crime de estelionato. Em todo o país, foram quase 30 mil pessoas que tomaram três doses da vacina contra a doença que já matou mais de 527 mil brasileiros. A Bahia é o quarto estado com maior número de casos desse tipo, atrás somente de São Paulo (4.870), Paraná (2.689) e Rio Grande do Sul (2.416).
O objetivo do estudo é encontrar incoerências e estudar os números da vacinação no país, a partir da análise dos dados públicos do Governo Federal, o DataSus. Os dados compilados para esta matéria, usados pelos pesquisadores, foram levantados até o dia 24 de junho de 2021.
A Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) disse que “não teve acesso ao estudo para fazer análises”. Contudo, o CORREIO enviou duas vezes o link com todas as informações que seriam veiculadas na reportagem. A Sesab ignorou as solicitações seguintes.
Já a Secretaria Municipal da Saúde de Salvador (SMS) respondeu, por meio de nota, que não há casos de pessoas que tomaram três doses na cidade. Porém, não há como saber se a pessoa que foi ao posto de saúde na capital baiana já teria se vacinado com alguma dose em outro município.
“O Ministério da Saúde ainda não disponibilizou acesso à base federal para Salvador. No momento, apenas o gestor federal consegue cruzar as informações recebidas dos Municípios e identificar aqueles que burlaram o processo de vacinação, ou seja, o sistema de dados da capital baiana não consegue identificar se a pessoa habilitada já recebeu a dose do imunizante em outra cidade”, diz a SMS.
A secretaria também informou que solicitou ao Ministério da Saúde o acesso à base federal para garantir mais segurança ao processo de imunização em Salvador, mas ainda não houve liberação. O Ministério da Saúde (MS) foi procurado pelo CORREIO, porém não respondeu à reportagem até o fechamento do texto.
Para o pesquisador Tiago Pereira, professor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, e integrante da ModCovid19, não há falta de experiência do governo brasileiro com o fornecimento de dados sobre vacinação, o que não justificaria possíveis erros.
“Todas as campanhas de vacinação brasileiras trabalharam com dados abertos e públicos, não é coisa nova, já é tradição. É importante que o dado continue aberto e é normal ter essas inconsistências quando se tem uma base de dados desse porte, com mais de 45 milhões de linhas”, explica Pereira.
O professor defende que os dados sejam anônimos, contudo, pontua que isso dificulta saber em qual ente da federação está o erro. “É bom que o dado seja anônimo, mas o problema é que, se anonimizar, você tira a fonte de erro e não sabe qual o causador, se é o Governo Federal, o estado, o município ou o atendedor nos postos de vacina. Não dá para saber de onde ele surgiu”, esclarece.
Pereira afirma que não são somente os dados da vacinação com inconsistências. O número de óbitos, por exemplo, no estado de São Paulo, diverge do das secretarias municipais em 14 mil mortes. “A secretaria estadual fala que pegou os dados com as cidades e as cidades que enviaram os números certos para a secretaria, e que demoraria 72h para os dados ficarem iguais, mas nunca ficam”, observa.
Por isso, ele sugere que quanto mais automatizado o sistema for, melhor para que a análise seja realizada. “Quanto menos pessoas mexem, tornando o sistema o mais automático possível, mais fácil é de identificar de onde veio o erro”, acredita. Ele exemplifica novamente com os dados de óbitos por covid-19 do Governo Federal, em que é preciso que o mesmo indivíduo seja cadastrado seis vezes na base de dados.
Estelionato
O Ministério Público da Bahia já prepara uma nota técnica para orientar a atuação dos promotores de Justiça em relação à aplicação irregular da terceira dose da vacina contra covid-19, através do Grupo de Trabalho para acompanhamento das ações de enfrentamento do coronavírus (GT/Coronavírus).
Ao CORREIO, o MP-BA explicou que há vários tipos de punições para quem se beneficiou da situação. “Quem receber irregularmente uma terceira dose pode responder administrativa, cível e penalmente. As pessoas que se beneficiarem da aplicação e agentes públicos que aplicarem a terceira dose indevida podem ser responsabilizados por ato de improbidade administrativa”, alerta o órgão, por meio de nota.
“A depender do caso concreto, pode haver também responsabilização criminal, pela prática dos crimes de infração de medida sanitária, de perigo para a vida ou saúde de outrem, de estelionato (no caso do paciente induzir o profissional de saúde a erro), de uso de documento falso, de falsidades ideológica e de material de atestado ou certidão (em caso de cartão de vacinação fraudulento) e também por crime de inserção de dados falsos em sistema ou banco públicos de dados e de informações”, acrescenta o MP.
Pessoa que ‘nasceu’ em 1800 foi vacinada
O ModCovid19 aponta que 750 pessoas na Bahia foram vacinadas com data de nascimento do século XIX. Uma delas é uma mulher de São Miguel das Matas, no Recôncavo baiano, que teria nascido em 1 janeiro de 1800, ou seja, teria 221 anos - mais velha que o imperador Dom Pedro II, se estivesse vivo. Já outra teria nascido em Campo Alegre de Lourdes, no Vale do São Francisco, em 2 de abril de 1893.
Outros erros são indicados. Existem 1.928 baianos, de acordo com o estudo, que teriam o registro da segunda dose antes da primeira. Outras 51.476 pessoas só teriam tomado a segunda dose, pois não há registro da primeira.
Além disso, oito baianos teriam tomado a vacina antes mesmo da vacinação começar, no dia 1º de janeiro de 2021. Esses registros são nas cidades de Piraí do Norte, Presidente Jânio Quadros, Gandu e Nilo Peçanha. No estado, o programa de vacinação contra a covid-19 começou no dia 19 de janeiro.
Outra incoerência na base de dados é que a mesma pessoa aparece duas vezes no cadastro de vacinados. Os registros duplicados têm as informações em todas as colunas iguais, como data de aplicação e lote da vacina, local de vacinação, etc. Isso ocorreu 11.242 vezes na Bahia.
De acordo com a pesquisa, isso aconteceu em maior número com os dados municipais - foram 12.776 baianos com cadastros duplicados enviados pelas secretarias municipais da saúde. Em Salvador, isso teria ocorrido, por exemplo, na Unidade de Saúde da Família (USF) da Federação, em 19 de maio, na USF do Vale do Cambonas, em 20 de maio, e na Unidade Básica de Saúde (UBS) Ramiro de Azevedo, no dia 15 de maio de 2021.
Por fim, alguns identificadores aparecem na base de dados mais de uma vez, porém, com algumas informações diferentes, como sexo e data de nascimento do indivíduo. Como o DataSus é anonimizado, ou seja, não mostra o nome da pessoa, cada vacinado tem um identificador. O identificador repetido, mas com algumas informações que divergem, sugere algumas hipóteses aos pesquisadores.
A primeira é de que o identificador não seja único, isto é, há pessoas diferentes com o mesmo identificador. A segunda suposição é de que há pacientes com dois ou mais registros no Cadastro Nacional de Saúde em que os dados pessoais diferem (sexo, data de nascimento, por exemplo). Uma última alternativa é que a inserção de alguns dados tenha sido manual, porém, isso seria menos provável, considerando o baixo número relativo de inconsistências dessa natureza. Na Bahia, são 135.
Infectologistas alertam para falta de estudos
A fim de esclarecer se a terceira dose da vacina contra covid-19 é mesmo necessária, o CORREIO procurou duas infectologistas. Ambas disseram que ainda não existem estudos concretos sobre o tema. “O ideal é vacinar a maioria da população com as vacinas existentes, porque ainda não está claro nos estudos qual delas deve ser aplicada como terceira dose e quanto tempo depois da segunda. Ainda é muito cedo para esse tipo de conduta”, alerta a infectologista Áurea Paste.
A infectologista Miralba Freire reforça. Para ela, a terceira dose deve ser tomada, mas no futuro, quando acabar a primeira etapa da vacinação. “É possível que haja a necessidade de se tomar a terceira dose, mas é um fato que está sendo estudado, não há um consenso ou conhecimento sobre isso. Algumas vacinas têm potência menor que outras, como qualquer produto, então começa a se testar a terceira dose”, esclarece.
Ela pontua que a indicação de terceira dose não será para todos os públicos. “Há possibilidade de se indicar, mas não quer dizer que será para todo mundo e que será com todas as vacinas. O grande desafio agora é vacinar todos com a primeira e segunda doses. Num segundo momento, a medicina tem mostrado que é preciso o reforço”.
A vacina da gripe, por exemplo, tem reforço anual. Miralba cita que ele deverá ser com um intervalo parecido. “Não adianta ter um reforço com período muito curto, isso não tem sugestão de melhor eficácia”, diz.
Dentre os estudos desenvolvidos, sugere-se a terceira dose da CoronaVac em idosos, em que a eficácia foi menor que a global, de 50,4%. Também é discutido a aplicação da terceira dose de fabricantes diferentes, como Pfizer e AstraZeneca, e AstraZeneca e Moderna, mas ainda não há conclusão sobre qual tomar primeiro nem em qual intervalo.